Da série "Música, futuro e internet"
Fabricio C. Boppré |Texto:
Bastante gente por aí tem sugerido que o Spotify é, por enquanto, o mais promissor e viável modelo para se resolver o imblóglio da música nesta nossa era internética. Seria uma espécie de cruzamento do iTunes com o Lastfm, pois você paga (quero dizer, tem os planos, incluindo um gratuito, mas imagino que pagando devem haver maiores privilégios), tem acesso à quase toda a música do mundo (eles têm já contrato com a maioria das grandes gravadoras e selos) e escuta à vontade, via web, sem fazer download de nada. Ou seja, uma espécie de rádio, mas que você tem controle, escolhe o que ouvir, e com pitadas de rede social (daí vem a comparação com o Lastfm), ou seja, tem lá seu perfil, sua biblioteca, estatísticas e não sei mais o que.
Claro que se trata de um modelo que se apóia na popularização da banda larga. Sem uma boa conexão, nada feito, continuará valendo mais à pena fazer parte da rede global de distribuição de música (vulgo pirataria) que hoje formamos. E há outro problema: com a sua música alocada na internet somente, não tem como carregá-la para outro local, colocar num mp3 player e coisas do gênero. Você estará pagando mensalmente para ter acesso à ela na internet, não para possui-la (que é o iTunes hoje, digamos). Imagino que os caras estejam apostando que em breve a internet de rápida velocidade estará em todo o lugar. De fato, isso não deve demorar a acontecer, pelo menos no eixo Europa/EUA --- aliás, nem sei se o Spotify já aceita assinaturas vindas do Brasil, me parece que não.
Enquanto isso, poucos dias atrás uma outra notícia me chamou a atenção. Pode ser mais um daqueles turning points, ou pode não ser nada. Tire suas próprias conclusões.
Comentários:
É a indústria procurando espaço no meio dessa baderna... Já li mais de uma reação de artistas independentes gringos (não vem ao caso de quem se trata) criticando ferozmente a distribuição gratuita de MP3. Parece que está passando o momento em que os pequenos se vangloriavam das benefices da divulgação via web e davam risada da cara das majors. Hoje, até eles sofrem para vender poucas centenas de qualquer formato, seja analógico ou digital. Queira ou não, o MP3 não só "matou" formatos, como "matou" conceitos. Toda a conotação artística da música foi pelo ralo, a Touch And Go fechou sua cadeia de distribuição, as majors tentam alavancar vendas de vinil para recuperar outros valores que um álbum carregava. Se as majors nunca fizeram questão de atribuir um valor artístico aos seus produtos, os independentes acabaram pagando o pato pela desvalorização da música como um todo. Não sei, acho que aquela música do Brian Wilson ("I Just Wasn't Made For These Times") vai de encontro às minhas convicções, mas acho uma merda assinar acesso a música como se assina TV a Cabo ou linha de telefone.
Vicente, o curioso é que já houve um tempo em que os puristas consideraram heresia querer colocar a música num objeto, gravá-la num pedaço de plástico. Música era para ser assistida, ver os músicos no palco, na ópera, etc. Quando surgiu o vinil, alguns artistas acharam que colocar sua música num negócio desse era vender a alma ao diabo, e tenho certeza que houve também, entre os apreciadores da época, quem achasse que aquilo era um absurdo, seria o fim da música de qualidade, da arte. Já o fetiche dos puristas contemporâneos são justamente esses objetos, e ficamos furiosos em vê-los definhar diante da novidade do nosso tempo, no caso, a música na internet. Às vezes a história é irônica [risos].
A questão é que a música é um bem não-material, por mais que sejamos apegados aos discos. Com o avanço da tecnologia, a tendência é aproveitar as novidades para distribuir a música, torná-la acessível, depender menos de serviços de terceiros, etc. Não creio que a internet esteja matando a música como arte, são outros os problemas. Ela está trazendo dificuldades para quem trabalha com essa forma contemporânea de distribuir a música, que são os discos, sem dúvida alguma. Mas esse nem é o problema maior, ao meu ver. O problema a ser resolvido é a devida remuneração de quem cria a música. Nesse sentido, o Spotify é um caminho interessante, pois remunera os artistas (mesmo que indiretamente, pois imagino que isso aconteça por via dos selos, que são quem recebem do Spotify e de seus usuários), e suficiente para quem se relaciona com a música na forma mais simples: escutando-a.
Quanto ao nosso fetiche contemporâneo [risos], o de comprar discos, o prazer de ter uma discoteca em casa e tudo mais, eu acho que com o passar do tempo, as abóboras se acomodam na carroça. Assim como é inegável que a indústria de discos, de um modo geral, é nojenta, com seus produtos fraquíssimos e de preço elevadíssimo, certamente há quem faça coisas de valor. E certamente haverá o público que continuará dando seu suporte a estes que merecem sobreviver. Afinal, não foi o advento do vinil que matou o show ao vivo. Ali está um prazer específico: ver o artista no palco. E os discos envolvem também um prazer específico: ter a música em casa, gravada num objeto anexado à uma arte gráfica, algum texto, etc. Ainda que, em última instância, a música é somente onda sonora.
Eu nem acho, Fabricio, que minha contestação seja em função das coisas mudarem, mas da forma negativa com que tudo aconteceu. Não é porque mudou que melhorou, nem sempre as coisas mudam para melhor.
O que percebo é que aquele paraíso onde todos escutam o que bem entendem já mostrou seus pontos positivos e agora os efeitos negativos começam a surgir. Pequenos selos que prensavam poucas centenas de discos não o fazem, principalmente se for em CD. Não é mais um problema das majors malignas, mas de todo o contexto.
O que mais me chateia mesmo é a ausência do fator artístico que até hoje era representado pelo conceito de álbum. Um formato, uma arte gráfica, uma temática. Você acha que seria a mesma coisa conhecer, por exemplo, o MCiS sem aquele encarte espesso e as fotomontagens? Ou o SD sem as meninas na capa? Queira ou não, eram fatores muito importantes na solidificação do disco na percepção do ouvinte. Deixavam as coisas mais prazeirosas e, por que não, sagradas. Quando você pensa nesses discos, seu cérebro automaticamente se volta para aquelas imagens.
Hoje, a volatilidade é tão grande que os ouvintes não escutam um disco em MP3 mais do que uma vez. Não têm mais compromisso com um trabalho artístico. E isso, penso, não faria muita diferença se ocorresse apenas na música popular onde os hits e singles dão a tônica. O problema é que afetou até mesmo aqueles músicos que fazem discos em casa e querem apenas construir uma carreira sólida com obras a serem escutadas e fidelizadas junto ao público.
Entendo a tua contestação, sim, Vicente. E concordo que esse efeito colateral do advento das mp3 esteja acontecendo. Mas acho que são as convulsões normais de um período de revolução, de mudança em toda uma indústria e sua estrutura engessada. Apenas uma colocação, um pouco fora do tema principal, depois eu volto: mesmo em formato digital, é possível sim anexar um álbum à uma arte gráfica, um livreto, etc., que você pode perfeitamente imprimir e se envolver. E acho até mais legal que assim seja, pois assim contribuímos com uma gradual diminuição de industrialização (e cobrança!) de objetos inúteis, que custam recursos naturais, geram poluição, etc. Nos tempos onde o CD era a única forma de obter música, imagina quanta gente sequer tirava os encartes para folhear, pois se interessava unicamente pela música. Um imenso desperdício, e uma das formas de extorsão da grande indústria, na prática de seus preços sem noção. Então, há alternativas para se manter o nível do valor artístico que tu reclamas, muitas vezes o que ocorre é preguiça diante da mudança, por parte da indústria e mesmo dos artistas.
Mas voltando, acho que a tendência é a coisa melhorar, e continuarem existindo produtos para todos os gostos. Acho que é a aí que divergimos. Não concordo muito com a demonização da mp3 em si, que é no final das contas apenas um formato, uma inovação tecnológica. Culpá-la é, para mim, fazer que nem aquele camarada que culpa o sofá sobre o qual ele surpreendeu a mulher enroscada com o vizinho. Ou culpar a faca em detrimento ao assassino, que usou-a para matar alguém. O problema somos nós, ou os outros, pelo menos [risos].
Acho que quanto existir um modelo viável e justo de comercialização de música (e/ou formas mais eficazes de coibir a pirataria), o dinheiro estará circulando de forma justa, e daí cada artista e seu selo fará o que quiser, anexará o acessório ou suporte que quiser à sua música (como alternativas a inevitável venda no formato digital), e equilibrará isso de acordo com a resposta que seu público dará. Hoje, basicamente, o que ocorre é que para a maioria das pessoas, entre baixar um disco de graça, ou comprá-lo a um custo incompatível com seus rendimentos, não há sequer um segundo de reflexão para se fazer a escolha. Assim vemos a escalada da pirataria e a dificuldade dos médios e pequenos que faziam produtos valorosos.
Então, acho que vai chegar o tempo onde a mp3 será uma coisa normal, inocente, apenas um dos meios possíveis de se armazenar a música, vivendo em harmonia com os outros possíveis, e muitos sequer imaginarão como era possível um mundo sem elas. Assim como hoje muitos (eu e tu, por exemplo... quero dizer, eu venho mudando um pouco isso, mas é assunto para outro post) não conseguem imaginar um mundo sem os discos, sendo que estes mesmos objetos também já foram vistos outrora dessa mesma forma, uma invenção diabólica que destruíria a arte da música. Não vai ser da noite para o dia, mas realmente acredito que o caos aos poucos vai se ordenando.
Fabricio, peço para que não interprete meu posicionamento como uma birra de quem viveu outra era com outros valores. Tá, tem um pouquinho de ranço e saudosismo, mas tento enxergar as coisas boas e ruins e me posicionar a respeito.
O MP3 é tudo o que o ouvinte incidental quis, é o fim do argumento "não gostei de tal disco porque só tinha aquela música boa". Concordo com todas as inovações que apontasses, não dá para simplesmente virar a cara para isso. Nem mais é uma questão de resistir, os selos, os artistas e a indústria estão tentando se adaptar. Mas acho que os poucos (ou não seriam tão poucos assim?) que gostavam das coisas como elas eram, sem necessariamente questionar jogadas de gravadoras, impostos caros e problemas aquisitivos, dificilmente se curvarão e comprarão MP3. Particularmente, não consigo me enxergar fazendo isso. No dia em que o MP3 for o único formato existente para a nova música (estamos caminhando para quase isso), farei como os tiozinhos que escutam seus velhos LPs dos Beatles até hoje.
Vicente, sei que não é birra. São mudanças, incertezas e questionamentos normais num momento como esse (praticularmente caras para quem é apreciador sério de música), e a discussão é muito boa, por isso minhas réplicas e tréplicas [risos]. Eu tento olhar a coisa duma perspectiva histórica, deixando um pouco de lado o apego material, as circunstâncias, e acho que o futuro não é tão ruim assim. Não creio que música será sinônimo de mp3, como temes, mas isso nós só vamos descobrir acompanhando o desenrolar da história...
Eu tenho uma idéia para um outro post, que é mais ou menos continuação natural dessa discussão --- tem a ver com um aspecto prático dela, comprar música em formato digital. Daqui uns dias retomamos!
Acho que o MP3 (ou a música digital em arquivos) vai sim se transformar no grande meio oficial de veiculação de música, se é que já não se transformou. Muito mais pela cultura que ele está construindo do que por opção da indústria e dos ouvintes, de se ter tudo às mãos e nos bolsos em instantes, de ter exatamente o que se quer por um pequeno preço. Somos uma das últimas gerações que conheceram o outro lado, mas as crianças de hoje já não convivem com CDs ou álbuns. Elas interagem com a música através do computador, do celular e dos players. Muitas conhecem as bandas através do Guitar Hero do que pelos próprios discos. Mais uma vez voltamos para o tópico de o que a música passou a significar para as pessoas com essa mudança e o quanto isso é bom ou ruim. Será que a música ganhou ou perdeu sendo tratada como um produto que pode virar ringtone?
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