The Beach Boys: "The SMiLE Sessions" boxset
Vicente M. |Imagem principal:

Crédito(s): 2011, Capitol Records
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The Beach Boys: "The SMiLE Sessions" (2011/Capitol Records)
OK. A essa altura o álbum perdido dos Beach Boys, SMiLE, sobrepôs seu status mítico sugestionado desde as primeiras reportagens na época de sua criação, na passagem de 1966 para 67 e devidamente solidificado quando nos primeiros meses de 67 anunciou-se o engavetamento do projeto. Com as versões requentadas em álbuns dos próprios Boys, a circulação aleatória e desordenada de inúmeros fragmentos pirateados desde os anos 70, passando pela primeira "versão oficial" na box de Best-Of nos anos 90 até o livre acesso nos anos 00 de praticamente tudo que vazou via internet, o "álbum" (algo que nunca foi, na verdade) há tempos deixou de pertencer a seu criador, Brian Wilson. Já em 2004, quando sua banda (e manager? esposa também?) o persuadiu a lançar sua versão definitiva baseada nesses inúmeros fragmentos vintage presentes nos PCs e Macs do público-alvo, SMiLE já havia tomado vida própria, através de dezenas de versões compiladas, remixadas e recombinadas pelos fãs ao longo dos anos. Àquela altura, muito do fascínio residia na fixação em descobrir os caminhos confusos tomados pela cabeça de Wilson durante a composição e gravação das músicas nos anos 60, num exercício de enumerar sessões de gravação, decifrar suas intenções e interpretar o que era "quente" e "frio" dentre tantos registros de estúdio. O curioso e fascinante é que ao mesmo tempo em que todas as versões eram válidas como uma forma de interpretar e "definir" um álbum, convivia-se com o fato dele nunca ter existido, algo que angustiou os fãs e apreciadores dessa fase dos Beach Boys durante décadas.
A versão de 2004 gravada por Wilson e sua banda apresentou-se ao mercado como a "conclusiva", a "versão que Brian sempre quis fazer mas não conseguiu nos anos 60". Um pequena dose de ceticismo já era suficiente para negar tal proposta, ou ao menos questioná-la, principalmente por quem levou em consideração a condição debilitada de Wilson desde sua reclusão e sua limitação em não só conectar-se com sua persona dos anos 60, bem como em atuar de forma fidedigna com eventuais intenções da época que ele conseguisse resgatar para o projeto. O fato é que Brian Wilson Plays SMiLE foi ovacionado, um sucesso junto ao público, bem como a turnê que o promoveu durante os meses subsequentes. Se o projeto em questão colocou um ponto final na áurea mágica das gravações, ao impôr um final definitivo (porém questionável, frisemos novamente), seu grande sucesso foi o ponto de ignição deste lançamento, The SMiLE Sessions, que revisita o tracklisting estabelecido por Wilson em 2004, porém, usando as sessões originais dos anos 60. Resumindo, o engenheiro Mark Linnet (supostamente com a supervisão e/ou aprovação de Wilson e os outros Beach Boys vivos) chafurdou os arquivos, reuniu todo o conteúdo disponível e o agrupou segundo a estruturação de Wilson de 2004.
O resultado é, dentro do que se estabeleceu como linha de desenvolvimento, de respeito. Não só se tem um exaustivo e organizado trabalho de restauração e reinterpretação das gravações como uma incrível e indispensável preocupação com ir além de um copy-paste de trechos, buscando um escopo abrangente e preocupado com uma unicidade até então inexistente nessas gravações vintage. Há obviamente nas entrelinhas uma intenção velada em fazer do trabalho a aproximação definitiva do que SMiLE seria caso tivesse originalmente visto a luz do dia, algo questionável por SMiLE Sessions tratar-se de um disco duplo, formato inconcebível para a época. A interpretação mais adequada é ver o melhor material disponível soando uníssono, na estrutura recente de Brian (e seus consultores), com a tecnologia e proposta mercadológica contemporânea. Nesse sentido, o produto é impecável. A qualidade sonora, antes sacrificada pelo caráter obscuro dos bootlegs que vieram à tona, agora soa cristalina e, melhor, perfeitamente equilibrada entre as diferentes sessões que originaram o conteúdo. Percebe-se também o rigor com o qual as múltiplas versões foram examinadas e triadas de modo que a interpretação do que supostamente entraria no álbum prevalecesse. Assim, tem-se a tão esperada fluência de um material que já em 1967 seguiu diferentes caminhos de desenvolvimentos, andou em círculos e muitas vezes terminou em becos sem saída.
Musicalmente, SMiLE Sessions talvez seja menos encorpado do que sua contraparte de 2004. Enquanto Linnet trabalhou com múltiplas versões, algumas com cara definitiva (ao menos para algum ponto do processo original), outras abandonadas ao ponto de não se saber o quanto contribuiriam para a edição final, o disco de Wilson passou por toda a revisão e regravação, dirigindo o resultado para o equilíbrio e fluência perfeitas. Em contrapartida, não há paralelos que se aproximem da performance dos Boys originais, tampouco a capacidade de se reproduzir hoje (ou em 2004) o clima das sonoridades sessentistas, qualidades que fazem desse projeto algo tão especial. É interessante observar que SMiLE, ao mesmo tempo que é desconexo, é repleto de fragmentos ricos em musicalidade. Seu DNA não conseguiu acomodar a multiplicidade de sons que celebrou a técnica de Wilson em Pet Sounds e Good Vibrations, sugerindo que embora boa parte das canções estivessem prontas estruturalmente, careciam do preenchimento com sonoridades e instrumentos à imagem dos dois trabalhos que as antecederam. Por isso é comum escutar os vocais suportados por um ou dois instrumentos, que dão lugar a outros dois sucessivamente, mas raramente se tem aquela combinação massiva de sons, quase orquestrada, que celebrou Pet Sounds. Por outro lado, há o esforço notável de Brian em sonorizar idéias, histórias e emoções, como a infame The Elements (Fire) com seus sons de sirenes, os legumes mastigados em Vega-Tables, o ritmo de locomotiva em Cabinessence e os animais em Barnyard. Esse parece ter sido um dos calcanhares de Aquiles do projeto original: a dificuldade de, além encontrar o ponto de partida para rebuscar as músicas segundo sua celebrada metodologia, dar a elas a conotação conceitual que Brian idealizou para o disco. Seria um passo a frente de tudo o que ele fez até aquele ponto, mas que mostrou-se hercúleo demais para sua capacidade em 1967.
O produto final (tenho em mãos a versão deluxe) é fantástico. Impecavelmente concebida, a caixa reúne o vinil 12" duplo, dois singles de 7", cinco CDs, um livro e um pôster. O vinil tenta recriar a configuração pensada originalmente, respeitando as artes de Frank Holmes, assim como os dois singles. Os CDs concentram o "álbum" seguido de algumas faixas alternativas no primeiro disco enquanto os outros quatro reúnem dezenas de registros de sessões, a exemplo da caixa de Pet Sounds. Para os fãs mais dedicados, são horas de gravações que ilustram o desempenho de Brian e dos músicos no estúdio, oferecendo uma visão bastante ampla da criação do disco e das indas e vindas que marcaram o processo. O livro é um deleite, com apresentação sublime, ótimas fotos e artigos interessantes sobre a concepção das gravações e dados técnicos. Uma única queixa recorrente entre os fãs foi a ausência de mixes finalizados pelo próprio Brian em 66/67 que, se não figurariam na versão final (não se sabe se tais mixes eram versões intermediárias ou definitivas) ao menos mereceriam seu lugar num produto tão abrangente e com conteúdo "arqueológico" tão rebuscado.
Esse capítulo final de uma saga que começou em 1966 fez justiça às expectativas do fãs e principalmente ao legado da época e seu caráter mítico. A Capitol Records respeitou o status inacabado do material, propondo uma interpretação ao invés de uma definição. Incluídos os quatro CDs complementares da caixa, tem-se um registro abrangente dos caminhos explorados, que reafirmam ao ouvinte sua possibilidade de continuar pensando SMiLE, remodelando e questionando suas próprias convicções, tal qual Brian Wilson o fez no comando das mesas de som dos estúdios nos longíquos anos sessenta. Talvez nas versões de LP e CD duplos a montagem de Linnet assuma papel mais relevante, eclipsando a contribuição que as sessões complementares na versão deluxe trazem para enxergar as SMiLE Sessions como uma obra inacabada, porém rica em ideias, melodias e criatividade, tão triunfantes e ambiciosas que nem mesmo seu criador, no auge de seu brilhantismo, foi capaz de conclui-las.
Comentários:
Pois é, o caráter desfragmentado desse disco (ou projeto de disco) sempre desencoraja qualquer tentativa de ouvi-lo, compreendê-lo, por parte de alguém que não é exatamente fã do Beach Boys, como eu. Admiro o Pet Sounds, claro, mas nunca fui além disso. Se algum eu me animar a explorar o SMiLE , procurarei pela música dessa caixa.
Sei que o post não se relaciona em nada com o foco da DD, mas o Vitrola sempre foi assim, o espírito é compartilhar as idéias sobre o que se está escutando. Se eu acabar comprando a caixa do Nevermind , prometo fazer um post no mínimo com o mesmo volume de conteúdo.
Sobre o SMiLE, não tem como deixar passar, para quem é fã e teve tempo de se envolver com o assunto antes de 2004. Era realmente inviável pensar num produto desses, levado tão a sério pela gravadora e artistas, apresentado de forma tão seletiva e exaustiva.
Vicente, aqui o espaço é livre, vale Nirvana, Beach Boys e John Coltrane!
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