Fevereiro / 2014
Vicente M. |Imagem principal:

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Arcade Fire : Reflektor (2013)
Encomendei meu 2xLP na Merge, recebi aviso de despacho em Outubro de 2013 e só fui recebê-lo em meados de fevereiro deste ano. Um salve para o combo RF + Correios que estão implacáveis para riscar o Brasil do mapa de países viáveis no mercado global de supérfluos. O fato é que quando opto pelo formato físico acabo esperando o disco chegar para então escutá-lo em old school style e então baixar os MP3s que usualmente acompanham no cartão de download. Esse espaço de quase um terço de um ano (!) entre o despacho de Reflektor e minha primeira audição me deixou num limbo onde, munido apenas do vídeo da faixa-título e das informações técnicas a respeito do disco, estranhei a repercussão "pouco" expressiva nas listas de melhores de 2013, algo que Arcade Fire supostamente dominaria mundo afora.
Mas Reflektor é um álbum estranho, esquisito, quase esquizofrênico. A banda se notabilizou por considerar o máximo de possibilidades sonoras que desaguam magnânimas e indiscutíveis, sendo catapultada do frio Canadá rápida e diretamente para o coração pulsante da música alternativa. Tal trajetória se deu muito pela vocação deles de trazer o ouvinte para próximo de si com uma acolhedora sinceridade, mesmo que normalmente embebida em pretensão, num ar de quem está sempre cheio de ideais. Do urgente Funeral, passando pelo globalizado Neon Bible e retornando aos microcosmos de The Suburbs, eles se afirmaram entre os grandes nomes da música desta década. Mas o então vindouro Reflektor já se desenhava "torto" desde sua concepção: produzido pelo LCD Soundsystem James Murphy e gravado em locais inusitados como a Jamaica, o disco busca referências em uma obra do filósofo Søren Kierkegaard, bem como no filme Orfeu Negro e traça uma saída tangencial para muitos roteiros sedimentados pela banda ao longo do tempo.
Primeiramente, Reflektor sugere o Arcade Fire desinteressado em usar explicitamente a força de sua música em prol de ideais (como a habitual comoção com a realidade haitiana), embora ainda haja referências, principalmente estéticas, no disco. Eles soam indiferentes ao exército musical que foram outrora, optando por um posicionamento distante e cínico, menos incisivo nas letras e acobertado pela frigidez usual da linguagem da música eletrônica, apesar do disco apenas tomar emprestado alguns aspectos do gênero. Embora preguiçosamente abordados por fãs e críticos como um disco baseado em dance music, Reflektor está muito mais para world music onde as longas faixas não se situam nos espectros explorados anteriormente pela banda e avançam por áreas mais intrincadas e imprevisíveis. A opção por faixas longas lhes concedeu a quebra com a sua habitual linguagem direta, criando uma conotação ébria onde predominam ritmos e climas que tomam o primeiro plano e conduzem as músicas, sugerindo influências de dub e trance. Essa abordagem fica bem clara em Flashbulb Eyes e Here Comes The Night Time onde a World Music é celebrada indiscriminadamente. Um pouco de rock sessentista, de jaqueta de couro, é explorado em Normal Person e You Already Know, esta última, com uma pegada que remete a Stray Cats. E em Joan Of Arc eles reafirmam que a concisão não tem vez ao ensaiarem ecos de punk rock para rapidamente se dispersarem em um indie rock bem menos objetivo, novamente dando espaço para que a faixa cresça sem pressa e compromisso, arrependidos do ensejo rebelde que se manifestou a instantes atrás.
Reflektor é dividido em duas partes e, embora se presumisse que o ingresso na segunda etapa apresentasse algum tipo de virada ou retomada de um Arcade Fire de outrora, a banda mantém a opção por composições esparsas e climáticas, fazendo das duas fases um único conglomerado musical. Entretanto, se na segunda parte há provavelmente a faixa mais fraca e enfadonha gravada nos quatro discos da banda (Awful Sound (Oh Eurydice), título conveniente, por sinal), estão ali pelo menos duas músicas capazes de "salvar" o álbum para quem esperava material alinhado com The Suburbs: It's Never Over (Hey Orpheus) aposta nas eletrônicas dançantes oitentistas combinadas com guitarras cheias de pegada e vocais em uníssono, meio que restaurando a abordagem visceral que tanto se preza na banda. <Afterlife*, por sua vez, é a faixa que nunca falta nos álbuns do coletivo, com ares épicos e derradeiros, meio que uma exceção para redimir o disco de todos os riscos assumidos.
Refletor é o trabalho mais desafiador do Arcade Fire por quebrar muitos parâmetros construídos ao longo do tempo, responsáveis pela sua celebração e culto. É meio que uma daquelas brincadeiras de golpear um canivete entre os cinco dedos sem atingi-los e embora quaisquer iniciativas de guinar pela tangente em discografias de bandas sejam sempre bem-vindas, às vezes as intenções não correspondem ao índice de satisfação que se teria caso a banda tivesse optado por ser menos desbravadora. São riscos que fizeram do álbum o ponto menos obrigatório da discografia da banda, com o qual tende-se a permanecer enamorado por bem menos tempo. Sua extensão pouco objetiva e repleta de necessidades de encher o conteúdo com ideias e sons voláteis fazem da audição uma experiência exaustiva e por vezes pouco assertiva. Talvez seja essa a razão pela "tímida" repercussão no final de 2013, enquanto minha encomenda amontoava poeira em algum galpão dos Correios.
Slint : Spiderland (1991)
É uma obviedade exaltar em pleno 2014 mas o anúncio de uma reedição em formato de caixa resgatando o disco, demos, um documentário e mais alguns itens revigoraram o então inerte clássico e suas recentes audições me fizeram sucumbir ao preorder, o que promete muitas emoções num futuro próximo (principalmente a partir do momento que a Touch & Go remeter o pacote até o ponto em que chegar por aqui - oremos).
Spiderland é diferenciado já nos primeiros momentos de Breadcrumb Trail, instiga a atenção e embora tenha sido alçado ao posto de disco referencial do post rock, classificá-lo em um determinado gênero é quase criminoso, mesmo que grande parte das bandas do post rock tenham sugado litros desta fonte. É uma obra que se isola em si mesma, como são muitos dos grandes discos, e não é razoável enfileira-la junto a outras candidatas, nem mesmo ao disco anterior da banda. Sempre soou como um álbum cuja eficácia depende de clima: você pode escutá-lo num determinado dia e celebrar cada segundo de seu brilho claustrofóbico mas, no dia seguinte, retomá-lo e perguntar-se onde foi parar todo o êxtase testemunhado no dia anterior. E esse é um de seus pontos mágicos, cabe ao ouvinte encontrar a brecha, o portal para mergulhar naquelas águas obscuras estampadas em sua capa.
Suas seis faixas se complementam num emaranhado nebuloso, econômicos porém providenciais vocais, timbres fantásticos e ciclos rítmicos que incansavelmente parecem vagar em busca de algo que nunca será encontrado. Spiderland soa como uma obra lentamente construída e traçada a duras penas por artistas sobreviventes de uma longa trajetória. Entretanto, como revela o trailer do documentário que acompanha a vindoura reedição, algumas das músicas foram compostas por um Slint ainda púbere, no porão da casa dos pais de algum deles, provavelmente durante as tardes onde eles deveriam estar estudando para uma prova de matemática. É no mínimo irônico que poucos vestígios de adolescência tenham se refletido no álbum e que essa conjuntura derrube a mítica de que um disco como este só possa ser concebido a partir de um hábil e experiente compositor que sentiu na pele as agruras de uma vida errante. Ao contrário, ele sugere que assim como nos esportes, alguns triunfos musicais são diretamente ligados à combinação de talento inato dos compositores com o fator fortuito de uma determinada ocasião no tempo. Os caras certos na hora certa.
Mais intrigante é o fato do Slint ter sucumbido ali adiante e nunca ter consolidado uma possível sequência a esta pérola, o que talvez faça de Spiderland algo ainda mais especial, único. Fica a impressão de que as coisas foram como foram para culminar nessas seis músicas, assim como Loveless parecia ser até o ano passado. Mas a exemplo dos irlandeses, que recomeçaram a partir de turnês de reunião, os norte-americanos se reencontraram em alguns palcos e tiveram sua obra reverenciada por toda uma geração que mantém Spiderland em sua coleção de cabeceira. E, como é possível visualizar nos vídeos dessas turnês, os urros derradeiros de "I'm Sorry" proferidos pela plateia durante a fatídica Good Morning Captain abastecem prerrogativas para que a banda entenda a força de sua obra-prima e, eventualmente, considere novos vôos, mesmo que desprovidos do sangue juvenil que pulsava disfarçadamente no longínquo 1991.
Sunn O))) & Ulver : Terrestrials (2014)
Tanto o Sunn O))) quanto o Ulver têm alguns fatores em comum que justificariam o burburinho proveniente do grupo de potenciais interessados quando Terrestrials foi anunciado. Ambas bandas apresentam raízes solidificadas no metal que com o passar dos anos enveredaram para o experimentalismo, desfigurando-as ao ponto de ganharem conceitos vanguardistas e sofisticados. Além disso, as duas nutrem uma esfera significativa de fãs que as acompanham fielmente e disputam a tapas seus lançamentos limitados, além de promoverem seus trabalhos de modo que atinjam com naturalidade outras esferas de ouvintes. Entretanto, nem mesmo essas otimistas prerrogativas de círculos de interesse convergiram para a repercussão real que o amálgama atingiu desde que foi disponibilizado em preorder pela Southern Lord: trata-se do disco que mais rapidamente se esgotou na história do selo. Paralelamente, a repercussão em blogs musicais foi digna de nota, com incensados reviews que exaltaram o disco como candidato a destaque no ainda prematuro 2014.
Os ouvintes já tinham o que consideravam uma prévia da parceria, CutWOODed, uma faixa que não entrou nos discos brancos do Sunn O))) e acabou servindo de bônus para um box limitado editado em 2006. A faixa soa como um remix de alguma sobra de estúdio da dupla desvirtuada ao extremo pelo Ulver, porém ainda dentro da linguagem que representava o Sunn O))) naquela era. Se algo podia ser esperado, era que a parceria entre as duas bandas girariam em torno de dois pontos: a oportunidade de presenciá-los atuando como um único ente (superando a iniciativa de CutWOODed) e a retomada do universo mais sombrio que as bandas um dia representaram. Mas Terrestrials é um tanto frustrante quanto a esta abordagem, pois peca em não transmitir uma contribuição equilibrada dos entes e tampouco ingressar em terrenos cáusticos que fariam da parceria uma experiência a altura das perspectivas.
Com os reviews surgiram algumas entrevistas com Stephen O'Malley que clarificam um pouco o processo de composição e concretização da obra e ajudam a explicar essa divergência entre premissas e o produto final. Segundo ele, as gravações que ocorreram em uma noite com todos os integrantes foram maturadas ao longo de alguns anos, onde o núcleo inicial não esteve plenamente presente (Greg Anderson, por exemplo, participou apenas dos registros iniciais) e ficou a cargo do Ulver trabalhar os mixes a partir do material bruto. O'Malley participaria de circunstâncias seguintes do projeto, prestando consultoria e registros adicionais ao mix. Se houve unicidade a partir do momento inicial, ela foi muito mais em termos da preocupação de O'Malley, representando a porção Sunn O))), de estar fisicamente presente nos passos seguintes do que de instigar Terrestrials a ser forjado dentro de uma linha equilibrada. O produto final acaba muito mais relacionado com o Ulver do que com o Sunn O))). A sonoridade pomposa e orquestrada dos nórdicos está lá em primeiro plano, conduzindo os caminhos musicais e sugerindo que as questionáveis paredes de guitarras, se estiverem presentes, estejam soterradas no mix de sopros, orquestras e eletrônica. Fica proeminente a ideia de que o Ulver estava com as três faixas compostas antes dos norte-americanos ingressarem, embora seja possível também que o Sunn O))), por sua natureza flexível, tenha contribuído com instrumentos que não os caracterizam e aí teríamos um influxo muito maior de O'Malley do que de Anderson, musical e esteticamente.
Terrestrials seria mais coerente se tivesse sido lançado como um disco do Ulver ou um projeto com Stephen O'Malley em seu selo Ideologic Organ. A música ali representa muito melhor essa abordagem, a exemplo dos remixes que o Nurse With Wound produziu para o Sunn O))) em 2007. Por mais que o Sunn O))) tenha se desvencilhado de rótulos no decorrer de sua trajetória, é difícil escutar o disco e encontrar traços fortes de genuinidade, mesmo que as bandas possam estar plenamente em sintonia com o processo e o álbum representar exatamente a face de ambas naquele período de tempo. Reuniões pontuais de grandes músicos costumam frustrar expectativas e se apoiar sobre conceitos ao invés de conteúdo e não foi dessa vez que essa regra foi superada.
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