Dying Days
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Segunda-feira

Fabricio C. Boppré |
Segunda-feira

Crédito(s): Praia da Solidão, Florianópolis, em 9 de abril de 2018.

A segunda-feira quente e ensolarada em que fiz 39 anos, comecei-a no mar e terminei-a ouvindo uns discos de free jazz e Bach. Ao melhor estilo daquele personagem do Woody Allen (não me lembro de qual filme) que gostava de ir ao cinema em dias de semana e bem no meio da tarde pois assim sentia-se um subversivo por estar vendo um filme enquanto todos seus amigos estavam labutando em seus empregos, nesse dia eu acordei na praia e me preparava para voltar para casa, para fazer o que quase todos estão fazendo às segunda-feiras de manhã — trabalhar — quando então pensei: por que não? Afinal, era meu aniversário. Quero dizer, eu não dou a mínima para isso, mas se for para justificar um último mergulho subversivo, então passo a defender entusiasticamente a importância dos aniversários. Foi assim que às 9h da manhã lá estava eu flutuando pouco depois da rebentação, o céu azul brilhante escondendo astros e estrelas, a água fria e seu abismo invisível por debaixo (que ainda hoje me provoca certo frêmito sempre que vou um pouco mais para o fundo e já não toco mais os pés no chão), ninguém à vista, era como se estivesse sozinho no oceano. Na areia, uma penca de cães correndo de um lado para o outro — quem pode garantir que também eles não sentem essa alegria incomparável da praia, e, nesta hipótese, como é possível nos arvorarmos do direito de proibi-los de lá estarem? De noite, já em casa, já cumpridas as tarefas do trabalho, já descansado, já com 39 anos, já inebriado por algumas taças de vinho (novamente, a data do aniversário serviu-me de alguma coisa), resolvi escutar o jazz de Anthony Braxton, sobre quem havia lido alguma coisa dia desses. Achei esse disco de Braxton com o baterista Max Roach chamado Birth and Rebirth. Um espetáculo! Não sei dizer onde fica a fronteira exata entre o jazz e o free jazz: se o improviso delineia uma coisa da outra, então esse é um genuíno disco de free jazz, mas ele não vai para tão longe da fronteira, não é tão áspero quanto outras coisas que já experimentei do mundo avant-garde — é, enfim, perfeitamente assimilável e prazeroso, alternando barulho e melodia, experimento e formalismo. Depois escutei um disco ao vivo em que Braxton forma um quarteto ao lado de Dave Holland, Barry Altschul e Kenny Wheeler — este, no entanto, achei mais desafiante, precisarei escutá-lo novamente outra hora (vejam os títulos dessas músicas!). Por fim, coloquei para fechar a noite Lamento, álbum da cantora Magdalena Kožená e composições da família Bach. Em geral, não sou fã de música protagonizada por sopranos, tenores e outros vozeirões — coisas como árias e Lieder — mas esse disco é muitíssimo bonito. Há um equilíbrio fino entre a voz de Magdalena e a orquestração da Musica Antiqua Köln (conduzida por Reinhard Goebel) que alça a música às alturas, às esferas onde esse tipo de linguagem, na minha imaginação, é plausível, cancelando o efeito burlesco e antiquado de quando ela permanece aferrada à Terra narrando dramas aristocratas de reis e damas. Se bem que talvez estivesse eu, com todo aquele sal na pele e vinho no sangue, nas alturas.

Categoria(s): Opinião

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