Um jardim à parte
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

Crédito(s): foto de autor desconhecido, copiada daqui.
Texto:
Tenho uma relação difícil com o Dead Can Dance: não sei se amo ou odeio. Ou algo por entre estes extremos. É algo que me desconcerta, às vezes: não conseguir decidir se gosto ou não de uma música ou de uma banda — pois não é só com o Dead Can Dance que me ocorre isso; é com certa frequência, na verdade. É como se, em determinadas ocasiões, uma manta dessas de tecido ao mesmo tempo áspero e fino, de fios entrelaçados e cheios de nós, descesse sobre meus olhos, um véu de indecisões e obscuridades que impedem um julgamento límpido e efetivo, deixando-me desequilibrado entre pensamentos e sensações incertas. A luz entra filtrada e os vultos são visíveis do outro lado; a convicção sobre o que se está vendo ou sentindo, contudo, não existe, fica movendo-se entre a empatia e o desinteresse, a conexão efêmera e a indiferença geral. Pragmaticamente, talvez fosse o caso de dizer, nestas ocasiões: não gosto. Se o agrado não vem de imediato, incontestável, deve-se descartar a experiência, afinal, há um oceano infindável de outras músicas por aí aguardando para ser escutado, e não valeria a pena — de acordo com essa teoria objetivista — perder tempo com aquilo que exige tanta recapitulação e esforço para ser assimilado e apreciado… Isso, porém, não funciona comigo — em termos de música, minha racionalidade tem fronteiras claramente delimitadas. Há tempos que reconheço e convivo com estes conflitos nascidos de resíduos mínimos que certas bandas e certas músicas deixaram (e continuam deixando) em mim, em audições longínquas e desvanecidas (ou na semana passada, a ser recuperada daqui alguns anos) — às vezes algo de complexo ou de misterioso, que não se revela fácil, o oposto da música pop que atrai de imediato, do rock ’n’ roll que ainda amo como a religião de minha adolescência e da qual jamais desacreditei… A sugestão de algo recôndito, a despeito de uma instrumentação ou melodia que pouco me atraia, uma obliquidade intrigante qualquer que me chame a atenção por meio segundo, isso basta. Sei que não esquecerei, é mais uma banda ou uma música para o meu catálogo das coisas que não me decido se gosto ou não gosto. É como se houvesse uma cota reservada para isso, obrigatória, um cultivo que se dá num jardim à parte, acobertado em algum canto menos luminoso do terreno do meu cérebro. Um espaço segregado mas nunca totalmente rejeitado: é aí que mora o Dead Can Dance, entre outros. O disco que ouvi algumas vezes nesses últimas dias, sempre amortalhado nestas sombras de atenções inconstantes, foi o primeiro que a banda lançou, em 1984. E, para mim, foi uma revelação chocante: o Dead Can Dance nasceu na Austrália! (Não, eles não anunciam isso na música — eu li em algum lugar.) Se me perguntassem, eu daria como certo que eles eram alemães ou, vá lá, ingleses ou poloneses, qualquer coisa mais antiga cujo concreto dos prédios guarda ainda a lembrança de tempos mais sombrios e suas tragédias variadas — uma vez descartada a possibilidade de serem de algum reino de conto de fadas gótico, claro. Mas não, nada disso, eles são aussies; de alguma maneira insondável para mim conceberam esta música trevosa na terra cheia de cangurus e surfistas que deu ao mundo o Australian Crawl e o Men at Work. Lisa Gerrard, a vocalista — e cujos discos solos, estes sim eu os adoro inequivocamente — nasceu em Melborne; Brendan Perry, seu parceiro mais longevo na banda, é londrino, o que poderia explicar o fenômeno em parte… Ainda assim, a coisa me soa incongruente, por mais que estes esteriótipos sejam apenas isso — esteriótipos. Devem existir, afinal, bibliotecas na Austrália, e decerto nem todo mundo tem o cabelo descolorido por parafina e usa bermudas o tempo todo. Deve até chover de vez em quando. O disco de número 2 da banda foi lançado em 1985 e chama-se Spleen and Ideal, referência ao título da parte inicial do Les Fleurs du mal, de Baudelaire; a capa é um primor e uma prova cabal da insuspeitável beleza que nasce de certas combinações entre um bom conceito e uma péssima execução; a primeira faixa chama-se De profundis (mais livro de capa dura velha carcomida pelo tempo) e outras trazem estes títulos: Ascension, Circumradiant Dawn e Advent. Uma extravagância completa de dark wave e poesia e misticismo — vindos da Austrália — que garante o lugar do Dead Can Dance no meu jardim das afinidades nebulosas.
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