Dying Days
Seu browser está com uso de JavaScript desativado. Algumas opções de navegação neste site não irão funcionar por conta disso.

Impressões auditivas, Vol. IX

Fabricio C. Boppré |
Impressões auditivas, Vol. IX

Crédito(s): Foto de autor desconhecido retratando a Munique destruída após a Segunda Guerra Mundial, copiada daqui.

  • É uma proeza muito digna de admiração o sujeito ser chamado para compor a música de dois filmes bastante diferentes, ambientados em épocas que distam três séculos uma da outra, usar em ambos os trabalhos mais ou menos os mesmos instrumentos e muitas das mesmas idéias e, por fim, contra toda e qualquer perfeitamente justificada suspeita de que isso poderia não dar muito certo, criar duas belíssimas obras em total e profunda consonância com os filmes. Vangelis, como todo mundo sabe, compôs a música de Blade Runner; o que talvez nem todo mundo saiba é que ele compôs também a trilha de The Bounty, um filme meio esquecido de 1984 que é, na verdade, a quinta versão de uma famosa história de marinheiros e desertores na Marinha Real Britânica do século XVIII (a versão mais famosa creio ser esta com Marlon Brando, lançada em 1962). A explicação para tal façanha é muito simples: a música de Ευάγγελος Οδυσσέας Παπαθανασίου, convenientemente conhecido também como Vangelis, é a própria sonorização do deslumbramento, do sentimento de descoberta, de grandes coisas descortinando-se diante de olhos atônitos e assombrados. Podem ser terras distantes e selvagens aparecendo pouco a pouco por sobre a linha d’água, mal distintas por entre as nuvens no horizonte (é dele também a trilha de 1492: Conquest of Paradise, mas esse eu não assisti); pode ser o segredo íntimo mais terrível sobre a nossa própria identidade finalmente decifrado e inescapável. Vangelis, como que fora do tempo, criou uma música imortal para este imenso arco humano, música que, na memória de muita gente, corresponde exata e imediatamente a isso: o homem e suas reflexões a respeito de seu espaço na natureza e no universo. Não surpreende, no fim das contas, ela ter se encaixado também tão perfeitamente na trilha-sonora do Cosmos de Carl Sagan (tendo sido, nesse caso, selecionada a partir de alguns dos discos já lançados anteriormente pelo músico grego, e não composta especificamente para o projeto de Sagan). Um dia ainda escrevo algo mais refletido e elaborado sobre a trilha do Blade Runner, que amo intensamente.
  • Outra paixão, essa um pouco mais recente: Metamorphosen, de Richard Strauss. O compositor alemão é o autor de Also sprach Zarathustra, o épico tornado famoso mesmo fora dos círculos de fãs de música clássica depois de sua inesquecível aparição em 2001: a space odyssey, e embora eu adore Also sprach Zarathustra, é Metamorphosen a obra de Strauss que me toca mais profundamente. A execução dessa peça costuma durar cerca de meia hora, e não há divisão em partes ou movimentos: trata-se de uma única longa e coesa meditação, desenvolvida lentamente por um conjunto de cordas (pode ser um grupo bem pequeno, como um septeto, por exemplo), que atinge em determinado momento uma espécie de auge climático e depois vai se desfazendo pouco a pouco, calmamente, cada instrumento tendo seu espaço para emitir seus últimos lamentos, até que a música dissolve-se completamente no ar. Lembra-me um pouco, estruturalmente, The Lark Ascending, de Vaughan Williams, que também adoro. Há uma outra semelhança entre estas duas peças: para entender e admirá-las não é preciso conhecer profundamente a obra de seus autores ou ler livros sobre elas e sequer descrições por mais breves que sejam acerca de suas inspirações originárias: seus conteúdos emocionais são expostos nítidos e inconfundíveis, facilmente reconhecíveis por qualquer ser humano que tenha um mínimo de vivência sobre a Terra, um mínimo de experiência com as coisas que aprontamos e observamos por aqui. O que Strauss tinha em mente ao compor Metamorphosen não é algo exatamente bonito, não tem um final feliz: sua música é claramente a voz do espírito de alguém que viveu de perto os horrores da guerra (no caso, a Segunda Guerra Mundial), um clamor de desolação e prostração, mas um que tenta, apesar de tudo, emprestar alguma forma de compreensão e complacência ao absurdo indizível testemunhado, um olhar como que visto de cima, contemplando as cinzas e os corpos, lamentando e perdoando aquela hora final. A música do funeral da humanidade, trágica e comovente. Sobre Strauss, sua vida na conturbada primeira metade do século passado e a influência da guerra em sua obra, há páginas fundamentais em O Resto é Ruído, de Alex Ross.
  • The Lark Ascending é, evidentemente, sobre outro assunto completamente diferente — creio que seu título seja explicativo o suficiente. Outra diferença fundamental é o fato de The Lark Ascending ser protagonizado por um violino solo; as semelhanças com Metamorphosen estão apenas na estrutura e na expressividade. Como eu disse antes, não é preciso leitura alguma para assimilar e admirar esta música; a referência literária que deixarei aqui é portanto apenas um complemento, desta vez vinda do reino da ficção, o que parece mais apropriado no caso de The Lark Ascending. É uma das melhores passagens de Contra o dia, de Thomas Pynchon, um calhamaço espetacular de mais de 1000 páginas que vale cada uma das dezenas de horas investidas em sua leitura. A certa altura da trama colossal alguns personagens entram em uma igreja para assistir a um concerto em cujo programa consta The Lark Ascending. O público se acomoda, os músicos se preparam e a música enfim começa, e então, no meio da audiência, para o espanto geral… Bem, é óbvio que não irei revelar o que exatamente acontece. Não se revela nada de um livro do mestre Pynchon. Direi apenas que você vai acreditar piamente na verossimilhança daquilo que se sucede acaso conheça bem The Lark Ascending. Gravação recomendada: Pinchas Zukerman com a Royal Philharmonic Orchestra.

Categoria(s): Opinião

Comentários:

Não há nenhum comentário.

(Não é mais possível adicionar comentários neste post.)