Dying Days
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Impressões auditivas, Vol. XVII

Fabricio C. Boppré |
Impressões auditivas, Vol. XVII

Crédito(s): Foto do aparelho AM/FM Stereo Receiver Model 1260, da Gradiente, copiada daqui.

  • Conforme mencionei em uma das notas anteriores, foi na Bruneti Discos que comprei meus dois primeiros CDs, o Scoundrel Days do a-ha e a trilha-sonora do filme Young Guns II, gravada pelo Jon Bon Jovi. Isso foi na mesma ocasião em que fomos à Bruneti, eu e meu pai, para comprar o primeiro CD player da família. Foi num sábado de manhã, antes ou depois da nossa tradicional ida ao Mercado Público para comprar ou simplesmente dar uma espiada nos peixes recém postos à venda, e nos siris ainda vivos escalando uns aos outros, e os camarões e seus olhos pendurados. Creio que naquela época, por volta de 1990, o fluxo de gente no pequeno centro de Florianópolis não devia ser nem metade do que costuma ser hoje em dia, quero dizer, do que costuma ser quando não há uma pandemia à solta. Mas para os meus padrões de então — de moleque de 11 anos morador de um bairro residencial meio afastado do centro — aquilo era bastante gente.
  • Mas não vim aqui inventariar recordações sobre peixes ou camarões ou sobre o centro de Florianópolis: pretendo registrar algumas lembranças daquele meu primeiro CD player. Era um modelo CDP-2000 da Gradiente, aparentemente bastante popular à época pois há muitas fotos e vídeos dele espalhados pela Internet. Esta foto aqui mostra o painel do aparelho em detalhes: lembro-me com uma nitidez quase impossível da sensação táctil daqueles botões todos — em especial da cavidade que tinham os grandes botões de play e stop e da concisão de contato com a pele dos finos botões de avançar e retroceder —, e do clique breve e seco que faziam quando pressionados. Lembro também perfeitamente dos números do visor digital, de como eram finos e de um verde muito translúcido, quase brancos. E lembro, sobretudo, do som que escutei quando coloquei para tocar pela primeira vez o Scoundrel Days. Percebo agora que naquele momento estabeleceu-se para mim uma espécie de paradigma de qualidade sonora que nunca irei sobrepor, por mais que venha a conhecer (e provavelmente já conheci vários desde então) outros aparelhos supostamente melhores; um padrão que só consigo muito vulgar e simplificadamente descrever como “puro”, ou “cristalino”. Meus próprios aparelhos atuais são excepcionais, mas o som daquele Gradiente, as primeiras notas de Scoundrel Days tais como saíam daquele velho aparelho, é uma memória insuperável.
  • Este CD player funcionava acoplado num aparelho de som mais antigo, também Gradiente, aparelho que era, na verdade, uma combinação de módulos: um rádio (AM/FM Stereo Receiver Model 1260), um toca fitas (Stereo Cassette Deck CD-2100), e o prato para os discos de vinil, além das caixas de som. Também as sensações do manejo dos botões destes módulos todos estão inscritas de modo imperecível na minha pele e na minha memória, em especial o de sintonização do rádio (que girava de modo suave, com uma pequena resistência) e as alavancas para ouvir, parar, pausar, avançar, retroceder e gravar fitas cassetes — estas alavancas, aliás, foram abusadas para além do razoável…
  • Todo este conjunto foi aposentado quando um dos módulos mais antigos deixou de funcionar, e o CD player foi abandonado junto, compulsoriamente, já que o próximo aparelho de som da família foi um Aiwa que já trazia embutido o tocador de CDs — uma gaveta para três discos — além de dois decks para fitas cassetes (enquanto que os vinis foram provisoriamente abandonados). Deste aparelho Aiwa lembro apenas que o som era bastante ruim.
  • Das queridas lembranças nostálgicas do passado para os laboriosos e calamitosos fatos do presente: morreu Aldir Blanc, e eu, estupefato com a ingenuidade e a incompreensão, leio por aí pessoas lamentando que não houve nota de pesar por parte do governo brasileiro. Se esta inocência não for algum tipo de auto-enganação, destas que às vezes nos impomos para fingir que está tudo bem, então é uma ignorância muito perigosa — é não entender o básico da destruição em curso neste país. Ora, alguém realmente acredita que um Aldir Blanc tem espaço nos planos de quem manda no país hoje? Vocês acham que essa gente se importa com a morte de um poeta? Será que sequer sabem quem foi Aldir Blanc? Tenho certeza que não, e se soubessem, não lamentariam; festejariam como mais uma vitória, mais um passo bem-sucedido para a consumação de seus projetos. Está mais do que na hora das pessoas entenderem a gravidade do que está acontecendo com o Brasil. Não entender é não saber enfrentar. Não pode ser tão ruim? Pois eu acho que é ainda muito pior.

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