Protejam os sabiás
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

Crédito(s): Foto de Sandro Von Matter, copiada daqui.
Texto:
Tenho a tremenda sorte de morar próximo a uma grande área de natureza (ainda) preservada, repleta de árvores felpudas que exibem todos os tons de verde imagináveis e, agora, em princípios da primavera, pontuada pelas cúpulas amarelas dos guapuruvus que começam a florir. Desses morros desgarram-se multidões de pássaros que adoram se aventurar por entre os prédios das ruas próximas e pelo verde mais econômico e simétrico da pracinha, e pelos telhados das casas e pelos fios dos postes, que abrigam casas de joão-de-barro e descanso provisório para a recreação incessante de canários e bem-te-vis. Os quero-queros, em particular, por alguma razão adoram zanzar carrancudos pelo asfalto; as andorinhas, que já estão de volta, parecem ter como razão única e suficiente de suas vidas voar rente aos prédios e exibir suas audácias umas às outras; cambacicas imprudentes, frequentemente, entram nos apartamentos e nas casas, e para tirá-las de lá é sempre uma trabalheira. Essa passarada toda, como não poderia deixar de ser, fornece ao bairro a alegre algazarra sonora típica destes animais, o pano de fundo sensorial que é, provavelmente, dentre as familiaridades que os brasileiros compartilham, aquela que nos é mais básica e primeva, e talvez a que primeiro sintamos falta quando nos encontramos apartados dela, mesmo que não compreendamos de imediato o que é esta falta, o que é que nos foi tirado. Tal cantoria, contudo, fica abafada durante o dia pelo barulho dos carros, das pessoas, das construções; é de noite, tenho reparado ultimamente, que a coisa fica realmente fascinante. Tudo começa no crepúsculo último do dia com o berreiro multiplicado de uma espécie que não sei identificar, mas que gosta de se aninhar aos montes em certa árvore de folhagem densa que temos por aqui, e que por acaso há uma na calçada bem em frente ao meu apartamento. Os quero-queros — certamente os pais e mães mais super-protetores de suas crias em todo o reino animal — também ficam histéricos neste período, voando baixo por entre os prédios, alarmados com alguma coisa que só eles conseguem ver. Madrugada adentro é a vez dos sabiás, que aproveitam-se do silêncio para cantar com toda a força de seus possantes minúsculos pulmões. Finalmente, inaugurando a manhã, o pio sigiloso das corujas na grama da pracinha e o retorno da quero-querença dos quero-queros, além da zorra dos aracuãs um pouco mais distantes, em meio às árvores dos morros do outro lado da praça — distantes, mas plenamente reconhecíveis, porque o som que produz esse animal é algo que invenção divina ou diabólica alguma poderia conceber, por mais criativa que fosse… (Durante as horas escuras há também muitos morcegos circulando por aí, mas destes seres, infelizmente, o máximo que podemos fazer é desenhar a forma de seus sons.) Eu tenho percebido cada vez mais todo este alarido noturno-crepusculino. E desconfio, inclusive, que a música dos sabiás esteja informando os sonhos que frequento durante a noite, e, por conseguinte, intervindo em todo o restante de minha vida já sob a luz do dia, vida esta que tem como fio condutor meu interesse em música. Serão os sabiás os culpados disso? Não consigo lembrar se havia sabiás cantando de madrugada no bairro (outro) em que passei a infância; o princípio do meu interesse em música, naquela época, sei situar em alguns outros seres e circunstâncias, e as noites de então creio que eram de sono inviolável e sólido demais… Talvez eles — os sabiás — estejam hoje refinando e reforçando esta minha obsessão e prazer; talvez sejam emissários que a natureza incumbiu de secretamente nos plantar na memória e na subconsciência algumas boas razões para nos levantarmos de manhã cedo, razões boas e vigorosas o suficiente para suplantar o desânimo com a vertigem de desgraças que atingiu este país… De modo que proponho a seguinte estratégia: temos que proteger a Amazônia e o Pantanal, e os morros e as praças, e toda a natureza que vai sendo sistematicamente destruída neste malfadado país — mas temos que, sobretudo, proteger os sabiás.
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