Dying Days
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Chamado

Fabricio C. Boppré |
Chamado

Crédito(s): Sous-bois, de Paul Cézanne, copiada daqui.

Analisando em retrospecto, me dou conta de que já há vários dias é que a música clássica vinha me acenando, semi-encoberta por entre o tumulto dos arredores da minha psique, lançando ofertas de ordem e de descanso, coisas de que andamos todos muito precisados. Porém, não sei bem o porquê, hesitei um pouco antes de prestar a devida atenção e tomar-lhe a mão. Minhas audições andaram meio confusas, sem muito método ou intenção; numa breve recapitulação (pois não fiz ainda nenhuma anotação para o meu próximo relato mensal) lembro-me de escutar aos novos discos do Tears for Fears e de Shabaka Hutchings e ao bom e velho Walking into Clarksdale da dupla Page & Plant, e também alguma coisa do Dälek e do Burial, além de duas ou três noites ao som de Chet Baker (velhíssimo clichê ao qual não consigo resistir) e mais alguns tributos em memória de Vangelis, mas nada disso resultava de escolhas fáceis ou naturais, estavam mais para os discos que me apareciam pela frente e se afiguravam, quando muito, menos inadequados (exceções feitas ao Shabaka Hutchings e ao Vangelis). Tendo chegada a minha estação metaleira por excelência — o inverno — tentei também ouvir alguma coisa do reino da música do mal, mas tampouco nisso fui lá muito bem sucedido e nem me lembro direito que discos e bandas escutei. Recordo-me vagamente de uma banda finlandesa… Ou era grega? Enquanto isso, a figura espectral acenava e acenava… Ela foi então pacientemente se constituindo, se fazendo de sua matéria qual seja, até que enfim assomou clara e evidente em minha frente, paradoxalmente sob as formas mais complexas e convolutas dos concertos e das sinfonias — não exatamente o tipo de som mais restitutivo que conheço — a música retumbante de Mahler, Brahms, Beethoven, essa turma. Cedi não sem alguma desconfiança, logo aniquilada pelas belezas a perder de vista de Brahms e também de Bach e Vasks, que me deram algum chão e ordenaram uma e outra coisa que andavam meio fora de compasso em meu espírito. A música certa é muito importante para mim e em geral sei qual ela é sem nenhuma complicação desde o momento em que acordo de manhã cedo, desde os primeiros esboços de pensamento ainda misturados às imagens fugidias dos últimos sonhos da noite, de modo que me preocuparam um pouco estas hesitações e desconfianças… Espero que não seja alguma doença neurológica chegando mais cedo do que o previsto. Seja como for, ela estava ali, emitindo seus sinais, um tipo de música que sequer exige de mim um estado de espírito muito raro ou especial, já que não sou assim tão moldado pela convenção moderna da canção curta, da música feita de estrofe, refrão, estrofe, refrão, e fim. Rock ’n’ roll é visceralmente parte do que sou, mas não apenas: é com muita frequência que sinto vontade de ouvir jazz e música eletrônica, música de formas e extensões mais livres e que nisso se assemelham à música clássica. Os primeiros discos do Tangerine Dream exigem a mesma atenção que as sinfonias de seu conterrâneo Beethoven exigem, ou, pelo menos, serão bem melhor apreciados se a tiverem; o jazz indomável de Miles, Monk e Mingus é uma extensão natural da música pulsante de Vivaldi e Mozart; a beleza de alguns discos de música ambient de Brian Eno é feita da mesma substância celestial de algumas peças de Bach… E por aí vai. Como desdenhar da música clássica? Não satisfeita em ser a beleza que é, ela possui ainda esta espécie de senciência, este poder sobrenatural de chamar para junto de si e apaziguar estes pobres seres que somos, quando nos encontramos vez ou outra perdidos e sem rumo como que no meio de uma floresta.

Categoria(s): Outros

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