Discos do mês - Abril de 2022
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

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Não mudou muito a música que escutei ao longo do mês de abril, se comparada à escutada no mês anterior. Mudaram alguns autores e as ferramentas utilizadas por eles(as), mas creio que na essência foi uma continuidade — um mesmo estado de espírito, equivale dizer. Trilhas sonoras, música ambient e música eletrônica, se eu tivesse que resumir e não fosse este um resumo absurdamente injusto, pois a música que cabe nesses rótulos é imensurável. Escutei também, para mencionar alguma coisa divergente, ao excepcional novo disco de Roy Montgomery, Audiotherapy (está aberta minha lista dos melhores de 2022), e houve uma semana, ainda lá no começo do mês, em que não se passou uma noite sem que colocássemos algo do Talk Talk para tocar, mas estes discos, e também alguns do Lush, do Low e do Yo La Tengo, foram as exceções. Minha cabeça anda mesmo é perdida no espaço, entre as luas de Saturno e as cercanias de Alpha Centauri. Ou seja lá que lugar é aquele para o qual me leva a música do Autechre. Foi Glenn Branca, se eu não me engano, quem disse que embora se sentisse vivo quando ouvia a uma boa banda de rock ’n’ roll, era somente diante de uma boa orquestra que ele se sentia humano. Entendo Branca completamente, mas me pergunto então que tipo de entidade é esta que sinto ser quando escuto Autechre. É uma música que engaja a mente, alicia os sentidos, e os (nos) coloca a serviço de alguma outra coisa, uma consciência externa, algo que parece operar a partir de uma esfera sobre-humana. Como se fôssemos um exército de pequenos mecanismos pertencentes a uma grande máquina cósmica secreta, um aparato eterno e incansável. Não me importo, façam o que quiserem comigo, mas me tirem deste planeta por algumas horas diárias, por favor. Com o Autechre costumo partir logo para jornadas longas: as oito horas dos quatro volumes das NTS Sessions são extraordinárias. Meu favorito é o segundo, cuja metade final eu colocaria entre o que de melhor Sean Booth e Rob Brown já criaram. Outro agente infiltrado destas forças ocultas é o canadense Tim Hecker. Hecker tem uma paleta maior de sons e de ideias se comparada ao equipamento relativamente mais restrito utilizado pela dupla do Autechre: An Imaginary Country, por exemplo, tem aquela sujeira elétrica típica dos discos de shoegaze; Anoyo foi gravado com um conjunto de gagaku; e por aí vai. Mas no fim das contas o efeito é o mesmo: música para se perder dentro dela, para conduzir experimentos de extracorporeidade, para esquecer do mundo — você sabe, o ritual que venho descrevendo por aqui frequentemente. Ritual que, inclusive, ganhou uma generosa expansão em suas possibilidades alguns dias atrás, algo que eu vinha ensaiando e experimentando já há alguns anos, mas somente agora compreendi e me rendi ao seu encanto: The Disintegration Loops, de William Basinski. Por que a demora? Por que agora? Eu já tinha escutado ao conjunto completo destes discos pelo menos umas quatro ou cinco vezes antes, e a contemplação de seus loops e suas graduais desintegrações nunca tinha me impactado antes, nunca teve efeito sequer próximo ao que a música de, digamos, Éliane Radigue tem sobre mim. Mas pelo visto alguma semente ficava germinando em minha mente após cada audição, pois passava um tempo e eu voltava a ela... E desta vez a ficha caiu. Por que? A correta atenção, talvez; uma sensibilidade maior para com o conceito de deterioração, de finitude, que reside no âmago de The Disintegration Loops. Outros tempos, outras circunstâncias... O rio no qual entramos é sempre outro, dizia o velho filósofo, e talvez possamos dizer o mesmo da música que escutamos. Fato é que muitas das horas de abril eu passei escutando à lenta desintegração das fitas de Basinski e do mundo ao meu redor, alternando entre o estarrecido e o transfixado. Para finalizar, agora sim uma descoberta: a música irrotulável da inglesa Elizabeth Bernholz, aka Gazelle Twin. É difícil descrevê-la em termos de gêneros e referências; o que não tem como não assimilar de imediato é sua estranheza quase repulsiva, música cuja única origem plausível me parece ser a mente de alguém assolado por traumas diversos, alguém em conflito permanente com um mal-estar obsessivo. Talvez simplesmente alguém que é mulher em um mundo misógino, mas também alguém cuja constância do sofrimento já lhe ensinou que a sobrevivência depende de se fazer algo de útil com seu tormento, dar-lhe alguma forma, torná-lo parte do cenário ao redor, do mobiliário da vida, e tentar seguir adiante. Não sei se tal diagnóstico se aplica a todos os discos de Gazelle, mas certamente se aplica a Pastoral. Pode parecer estranho, mas me atrai intensamente a música desconfortável deste álbum cuja excentricidade começa pela capa, uma deformação bizarra das capas dos discos da Deutsche Grammophon. Por outro lado, o bom gosto da moça é notável: alguém que tem entre seus discos favoritos as trilhas sonoras de Terminator e Highlander, além de alguma coisa da lavra de Arvo Pärt, essa pessoa obviamente está entre as minhas afinidades mais seletas.
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