Dying Days
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Discos do mês - Agosto de 2021

Fabricio C. Boppré |
Discos do mês - Agosto de 2021

Daniel Lanois - Belladonna

Foi mais ou menos como uma substituição: saiu o Down on the Road by the Beach e entrou em seu lugar este Belladonna de Daniel Lanois. Digo isso porque o que me atrai em ambos os discos é essencialmente a mesma coisa, um mesmo tipo de experiência sonora: música escoando sem pressa alguma, tateando seus caminhos sem matrizes ou convicções, movendo-se com a mesma casualidade e indeterminação da fumaça que se ergue no ar parado. Não chega a ser ambient, eu acho — tem movimento suficiente para não o ser —, e está muito longe de ser algo como rock ’n’ roll ou qualquer outra coisa do tipo; é uma exploração de texturas, de espaços fronteiriços, de paisagens espectrais. Evoca um pouco as melhores trilhas sonoras de Ry Cooder, em especial a de Paris, Texas. Os discos mais recentes de Lanois que conheço também são ótimos (Heavy Sun, Goodbye to Language), mas meu favorito é este, um álbum que nunca falha em me enfeitiçar.

Caetano Veloso & Gilberto Gil - Dois Amigos, Um Século de Música

Eu deveria ter tido mais juízo e me mantido estrategicamente longe da música brasileira, como tenho feito nos últimos meses. Foi num lance de distração, numa tarde de trabalho cansativo em que meus ouvidos pediam por uma música quieta e acústica, que, tendo esse disco à mão, acabei dando-lhe play e imediatamente aconteceu o que só poderia acontecer: lembrei-me do Brasil — fui esmagado pelo Brasil — e fui tomado por uma tristeza imensa. Já faz alguns anos que esta tristeza é uma presença constante, um companhia persistente e diária, mas é com razoável sucesso que tenho conseguido mantê-la domesticada num canto isolado do meu cérebro, ocupado como ando com muito trabalho, filmes, livros e música — mas não música brasileira, é lógico, que é para não provocar o bichano aprisionado. Foi, como eu disse, uma distração. E foi logo com estes dois gigantes, Gil e Caetano, dois dos nossos maiores, dois dos que melhor imaginaram e retrataram aquilo que já foi uma ideia de país, um passado e um futuro… Foi logo com esse longo disco ao vivo que passeia por 50 anos de música brasileira, de cenários brasileiros e utopias brasileiras, cantados e cantadas por estas duas vozes tão peculiares, tão frágeis e ternas, de sotaques misturados e perdidos e reinventados, sotaques cujos donos nasceram na Bahia e viveram exilados em Londres e voltaram para São Paulo — tenho certeza dos verbos, não dos lugares, me perdoem. Gil e Caetano, em todo o caso, superam em muito o meramente regional. Ou sabem fundir, com sabedoria e elegância, o regional e o universal. De resto, é música brasileira em uma suas melhores perfilações: sem arranjos cafonas, sem psicodelias importadas, sem a breguice padrão Rede Globo que durante tanto tempo imprimiu sua marca em tudo que é produto cultural deste país. Os violões dedilhados tão inibidos — a bossa nova sem a empáfia engravatada da bossa nova. Dois mestres calejados, apenas, que no passado distante e esquecido em que este show foi gravado (2015) esbanjavam ainda o único defeito que hoje fica difícil perdoar-lhes: absolutamente nenhum sinal de presciência, um alerta mínimo que fosse, de que o horizonte enegrecia e tudo aquilo que eles cantavam e celebravam estava prestes a ir para o brejo.

Mark Knopfler - Local Hero Soundtrack

Local Hero é um pouco conhecido filme de 1983 (Momento Inesquecível é seu título traduzido no Brasil), uma pequena e adorável excentricidade que se passa em um vilarejo isolado na costa norte da Escócia. Pouca coisa acontece no filme; seu charme são os diálogos, uns tantos momentos de humor nunca muito claramente voluntário ou não, as montanhas escocesas e as muitas garrafas de whisky. Seu fiapo de história desenvolve-se (hesitantemente) através das interações entre um punhado de personagens quase sempre sonhadores e todos ligeiramente exóticos. É o tipo de filme que penso ser capaz de ver e rever eternamente, mas cuja experiência ou rememoração pode se dar também — de forma um pouco mais diluída e descompromissada, é claro, mas com a vantagem de tomar menos tempo e poder ser feito enquanto se trabalha ou lava a louça — através de sua trilha sonora, de autoria de Mark Knopfler. Ninguém poderia ter feito trabalho melhor. A guitarra de Knopfler (ele também um Scotsman) não aparece tanto durante o filme, mas no disco ela capta com perfeição o estado de estupor e nostalgia que parece dominar os habitantes e visitantes da minúscula Ferness, lugarejo onde não há nada além do mínimo necessário à sobrevivência humana (um pub e um mini-mercado), além de um estranho encantamento no ar. O álbum traz também alguns breves interlúdios — estes sim presentes no filme — feitos com um tipo de teclado ou sintetizador muito popular em trilhas sonoras dos anos 80 (se eu não me engano, é o instrumento principal de Brad Fiedel na trilha do primeiro Terminator): é o som dos momentos mais contemplativos do filme, algumas cenas noturnas e cenários naturais, e também da distância e desconexão que o personagem principal sente tão logo se vê de volta em Houston, Texas, ao fim da história. Música e filme são sutil e surpreendentemente especiais, sem que isso pareça ser em algum momento suas ambições... Julgo que sejam os sensos meio embaralhados de fuga e de deslocamento, inoculados no ouvinte e no expectador junto com os aromas inebriantes de whisky e de mar, o que os torna assim tão singulares.

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