Discos do mês - Dezembro de 2022
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

Crédito(s): Kermis, de David Teniers, copiada daqui.
Texto:
Tatiana Primak-Khoury - Lebanese Piano Music
Eu adoro música executada por um piano solo e praticamente nada sei sobre o Líbano (o nome evoca apenas vagas lembranças de notícias vistas quando criança no Jornal Nacional, prédios em ruínas, homens de turbante portando bazucas). Uma antiga e estabelecida paixão sofrendo afluxos de uma cultura completamente desconhecida: isto é para mim irresistível e eu não poderia deixar de escutar a este disco. Escutei, adorei. Aquela inevitável expectativa diante de obras dessa procedência — os tais “sabores” orientais, imagem bastante gasta e reducionista — vai se diluindo aos poucos, seja pela variedade das peças, seja pela beleza das composições, que não demoram quase nada para envolver o ouvinte e silenciar conjecturas sócio-culturais, preconceitos e esteriótipos. O que se escuta, por exemplo, na Sonata para Piano No. 3: Pour un instant perdu… (assim em francês está escrito na contra-capa do disco), do compositor Houtaf Khoury, é reconhecível sem que seja necessário adaptar o espírito ao que quer que seja: traduzidos em música, uma penca de sentimentos (dúvida, tensão, opressão) que ninguém deseja ter consigo, ou sobre si, e, no entanto, estamos o tempo todo a dar-lhes cores, a pô-los por escrito em frases e versos, a transferi-los para partituras, que são as nossas armas contra o destino, nossas formas particulares de transformar o que não podemos evitar em experiência e catarse. Aparentemente não há rincão neste mundo no qual se possa escapar a tudo isto; se minhas lembranças infantis do Jornal Nacional não estão por demais equivocadas, no Líbano, menos ainda. Por sorte também aquilo que anima as Esquisses, de Georges Bez, parece estar por aí, equitativamente espalhado por sobre o globo, temperando os humanos, impelindo-os a reunirem-se em torno de uma mesa, sob tendas, sob a meia-luz dos bares, sob a lua, a dançarem e conversarem, evitando de forma sistemática através dos séculos que cheguemos ao ponto de nos matarmos todos de uma vez, ou ao menos postergando ao máximo este desfecho. A música prescinde dos humanos, mas os humanos não prescindem da música.
(Este disco não está cadastrado no discogs, por isso não tem link para ele logo abaixo. No site do selo, é este aqui.)
Michael Been - Light Sleeper Soundtrack
Michael Been, falecido em 2010, foi líder do The Call, banda que já vi por aí ser chamada “a mais injustamente desconhecida dos anos 80”, opinião com a qual não tenho como concordar muito enfaticamente, embora tenha gostado do pouco que escutei. Been era também pai de Robert Levon Been, cantor e baixista do Black Rebel Motorcyle Club, e fez pequenos papéis em filmes como The Last Temptation of Christ, de Martin Scorcese. São todas informações muito meritórias em seu currículo, porém aquela que brilha mais intensamente, em minha opinião, é a trilha-sonora que ele compôs e gravou para o filme Light Sleeper, de Paul Schrader. Trata-se de um filme excepcional que assisti pela primeira vez alguns dias atrás, um desses filmes que conjugam um certo ritmo e uma certa fotografia que me atraem intensamente — lentos, entre o torpor e o sonambulismo; noturnos, entre o azul-escuro e as sombras profundas — combinação que praticamente me basta, a despeito de problemas ou mesmo ausência de roteiro, desse ou daquele clichê. Tenho que ver mais filmes de Paul Schrader (mais conhecido como o roteirista de Taxi Driver e Raging Bull). Dos outros méritos de Light Sleeper, a música onipresente de Michael Been é hipnotizante, e põe o expectador diretamente dentro da mente do personagem principal interpretado por William Defoe, e também visceralmente dentro da Nova Iorque conturbada e enlouquecida na qual, oscilando entre a introspecção e a perplexidade, perambula esta mente. A voz de Been é a de um observador da interioridade deste personagem enquanto a sonoridade arcana de suas canções vão dando conta do desgaste, do cansaço, o lento caminhar rumo a um desfecho que parece inexorável. E é, mas não sem alguma surpresa. Lindo filme, tornado ainda mais bonito pela contribuição musical de Been.
Midnight Oil - Blue Sky Mining
Já vou pedindo perdão pelo excesso de Midnight Oil cá por estas páginas… Vivo o auge da minha paixão pela banda, e, ademais, estamos no verão. Em dezembro continuei escutando seguidamente ao Resist, que mencionei no mês passado, mas quase toda a discografia da banda teve sua vez aqui em casa, ou vezes, em alguns casos. Destes outros, Blue Sky Mining foi provavelmente o que mais tempo passou alojado no CD player. É o disco que a banda lançou após Diesel and Dust, ou seja, disco de ingrata missão: tentar ser algo próximo ao seu formidável predecessor e não deixar a peteca cair. Acho que o Oil saiu-se muitíssimo bem, a peteca não caiu. Blue Sky Mining goza de muito carinho por parte dos fãs por uma variedade de motivos: nele estão diversas faixas que de modo geral são vistas como menores mas que, no particular, muitos têm como favoritas pessoais (Stars of Warburton, por exemplo, é uma das minhas); nele está Antarctica, que fecha o disco de maneira linda e meio assombrada; nele não faltam clássicos sempre presentes nos shows (King of the Mountain, Forgotten Years); nele está One Country. Tem um pouco de tudo. Fica atrás do Diesel and Dust porque falta-lhe, talvez, a coesão daquele, ou, mais provavelmente, porque Diesel and Dust é Diesel and Dust: um álbum incomparável. Em algo, porém, penso que ele ultrapassa seu antecessor: é evidente que eu adoro Beds Are Burning (ora, se Bob Dylan e Patti Smith gostam, você tem um problema sério se não gostar), mas acho a abertura de Blue Sky Mining com Blue Sky Mine ainda mais surpreendente e brilhante.
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