Dying Days
Seu browser está com uso de JavaScript desativado. Algumas opções de navegação neste site não irão funcionar por conta disso.

Discos do mês - Fevereiro de 2023

Fabricio C. Boppré |
Discos do mês - Fevereiro de 2023

Crédito(s): Garden Frills and Thrills, de Lee-Ann Heath, copiada daqui.

Bardo Pond - Dilate

Demorei muito tempo para conhecer a música desta banda. Seu nome sempre me cruzava pela frente, porém sua música, por esse motivo ou aquele outro, sempre me escapava. Parecia uma mandinga. Finalmente exorcizei o enguiço e venho me empenhando nas últimas semanas em recuperar o tempo perdido. Pelo o que pude perceber até aqui, os melhores discos do Bardo Pond são aqueles em que a música vai perambulando como um fantasma, imaterial e fugidia, sem intenção outra que não a de criar uma ambiência (nisso me lembra o Six Organs of Admittance e sua música ritualística), quando então subitamente erguem-se monstros feitos de carne e ossos e dotados de estrututa e substância perfeitamente manifestas. Nesse disco, Dilate, de 2001, tudo parece culminar em LB., a oitava faixa, mas a banda gosta mesmo é de ver sua música dissolver-se incerta como um fiapo de fumaça de incenso, e é assim que o álbum termina, e é assim que eu gosto também.

Pierre-Yves Artaud & Orchestre Français de Flûtes - Horatiu Radulescu: Dizzy Divinity I / Byzantine Prayer / Frenetico Il Longing Di Amare / Capricorn's Nostalgic Crickets II

E por falar em fantasmas. O sujeito mais obcecado por música, digamos que parecido comigo, que tenha uma queda por símbolos (como eu), por mitos e por música experimental e sinistra (eu, eu, eu), ao ouvir falar sobre um compositor insolitamente chamado Horațiu Rădulescu, autor de peças de música espectral e nascido na Romênia, não tem como esta pobre vítima da melomania não começar a salivar imediatamente, a torcer as mãos e os ouvidos de curiosidade, talvez começar a suar um pouquinho. Às vezes, facilmente excitáveis como costumamos ser, acabamos enganados. Não é o caso aqui. Rădulescu entrega, entrega muito. Este disco traz quatro peças executadas quase que exclusivamente por flautas (em alguns casos, muitas: mais precisamente 72 em Byzantine Prayer) que a feitiçaria do compositor nascido no país dos Cárpatos e da Transilvânia transforma em outra coisa, um envolvente e espesso manto sonoro sob o qual o ouvinte, até os segundos finais do disco, não consegue decidir-se se é mesmo seguro permanecer. Os mais curiosos e corajosos ficam, e voltam, porque é do tipo de música esfíngica cuja aparente rigidez e arcaísmo escondem um cosmos que se move e se espalha seguindo lógicas secretas, como que um novo pedaço da natureza sendo gestado para compensar aquilo que já desvendamos e assim preservar a relação de forças entre o compreendido e o mistério, equilíbrio necessário para que nos mantenhamos vivos e instigados nesta aventura que ora chamamos ciência, ora chamamos arte, ora chamamos vida. Espetáculo bonito demais de se ver, ouvir e sentir. (Para descobrir esta e muitas outras obras fantásticas similares, sem crises de consciência uma vez que se trata somente de discos antigos e fora de circulação, aponte para o endereço electronicorgy.blogspot.com. Meus agradecimentos infinitos às pessoas que mantém este serviço.)

Egberto Gismonti & Naná Vasconcelos - Dança das Cabeças

As sementes do meu amor pela música brasileira, plantadas quando eu era criança, tinham a forma de algumas canções de Elis Regina e de Chico Buarque, as peças mais famosas de Villa-Lobos e a voz de Gilberto Gil na abertura do Sítio do Pica-Pau-Amarelo, o violão de Toquinho, o samba de Adoniran Barbosa e a canção Bola de meia, bola de gude do 14 Bis. Esse lindo e colorido jardim, contudo, não foi devidamente cultivado durante minha adolescência, descuido que penso poder ser desculpado devido à super-exposição à música pop norte-americana e européia que eu e os da minha geração passamos a sofrer a partir de meados dos anos 80. Mas elas permaneceram comigo, as sementes e suas promessas; ao contrário de muitos, não cheguei a desdenhar completamente delas, nem as desenterrei para substituí-las ou jogá-las fora. O tempo passou e elas foram desenvolvendo-se sozinhas, sem maiores atenções de minha parte, achando seus espaços em um terreno que fui semeando com cada vez mais música, de todos os tempos e lugares, até que enfim voltei a reparar nelas, árvores já crescidas e saudáveis e viçosas, e finalmente entendi que uma parte de mim é música brasileira, ou o que eu tenho de Brasil em mim é herança da música desta terra e pouco mais do que isso. Houve, é claro, um refinamento, uma seleção natural; houve também a descoberta dos discos da Mônica Salmaso, esta magnífica cantora cujos álbuns me soam sempre como apuradíssimas compilações de tudo o que de melhor se criou e se cria em termos musicais neste país, não apenas na escolha do repertório mas também na beleza dos arranjos e das performances instrumentais a cargo de colaboradores do quilate de Guinga, Naná Vasconcelos, Nelson Ayres e Teco Cardoso. Houve, finalmente, a pesquisa e a descoberta de outras tantas maravilhas de nosso rico arcabouço musical, dentre as quais brilham intensamente os discos de Egberto Gismonti. Uma forma de descrever a música de Gismonti talvez seja como a antípoda da bossa nova de João Gilberto: enquanto na bossa é tudo meticulosidade, ternos e gravatas e sussurros, os discos de Gismonti são recheados de cantos primais, percussão animada por espíritos africanos e faixas que se estendem como transes coletivos. João Gilberto é das cidades, Gismonti é da floresta; aquele, do bourbon norte-americano, este, da yãkoana indígena. João era ótimo, mas eu sou do time de Gismonti. Tudo que escutei dele até o momento é fantástico, mas Dança das Cabeças, gravado em parceria com Naná Vasconcelos, sobressai-se, e figura no topo das coisas que eu mostraria para o estrangeiro (ou conterrâneo, que não são poucos os que o desconhecem) que me perguntasse o que de bom temos nós brasileiros para oferecer ao mundo.

Comentários:

Não há nenhum comentário.

(Não é mais possível adicionar comentários neste post.)