Discos do mês - Julho de 2023
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

Crédito(s): pintura de Darek Zabrocki, copiada daqui.
Texto:
Após terem contraído Covid, algumas pessoas tiveram a má sorte de desenvolver Covid longa. Eu, aparentemente, tenho a sorte muito duvidosa de ter desenvolvido “febre de AOR longa”. Desde a moléstia que me acometeu em fevereiro de 2021, vez ou outra me pego ansiando por um disco do Journey, do Asia, do Survivor, além dos dois discos da melhor (na verdade, a única que conheço) banda contemporânea a emular aquele som, o Heart Line. Essa banda é uma coisa muito curiosa. De tão artificial e de tão exímia imitadora dos cacoetes e cafonices daqueles grupos de outrora ela mais parece produto de alguma avançadíssima tecnologia, uma mistura de IA com impressora 3D com biotecnologia que gera não apenas textos e opiniões, mas também seres humanos com roupas e canções e instrumentos, o Heart Line sendo a resposta desta geringonça à solicitação: “gere-me, por gentileza, uma banda do século 21 formada por sujeitos que não têm a menor vergonha em confessar seu amor por Boston e Bon Jovi”. Perceber que sou parte da demanda que justifica a existência desse grupo é constrangedor, mas o que posso fazer? Não mencionar que escuto isso seria quebrar o pacto que tenho com meu principal leitor, eu mesmo. Mas descobri recentemente algo que ao menos pode-se dizer artigo genuíno: o disco Every Road da canadense Shari Ulrich. É adorável! A faixa The Heartland, além de repleta de todos os truques de estúdio típicos de seu tempo e sua vocação, começa assim: “The city’s humming / Got some money to spend / I wonder what I’ll do tonight / Maybe call up a few of my friends / See a movie and go out for a bite / I’ve been taking what I think I need / Making choices, making plans / But what I’m seeing on my T.V. / Is something I don’t understand”. É um sentimento e um imaginário bastante caros para mim, e suspeito que para muitos outros de minha geração: o deslumbramento com a cidade e suas possibilidades surgindo concomitante com o princípio (ou o agravamento mais explícito) da fratura na humanidade destes espaços, que começavam a tornar-se grandes e descontrolados demais, fontes de alegria e descobertas, sim, mas também de perigo e aflição. Tudo visto nos noticiários da TV e também presenciado in loco; a grande ambiguidade da vida urbana, a aventura instável de tornar-se adulto sob o fascínio e a insegurança de uma grande cidade. Usualmente não há Bob Dylans escrevendo as letras das canções das bandas de AOR, mas a experiência comum cantada de um ponto de vista similar às vezes capta minha atenção. Céus, uma lauda inteira sobre AOR — chega. Nem foi o som que mais escutei em julho: este posto deve pertencer ao BIG|BRAVE. Perdi a conta das ocasiões em que recorri ao seu último disco, nature morte, para uma sessão de deleite sensorial elementar, que não requisita ou não depende da mediação do intelecto ou da nostalgia. O som do BIG|BRAVE é, para mim, puro prazer primitivo, o prazer do som por ele mesmo, do seu instantâneo ressoar no cérebro, antes que se tenha tempo de pensar sobre o que se está ouvindo. Eu não entendo nada do que Robin Wattie canta e só posso esperar que isso não soe ofensivo. Sua voz é de uma sonoridade distinta belíssima, ao mesmo tempo carregada e angelical, e sobre a cama daquelas guitarras monumentais ela acaba sempre me deixando petrificado, desfrutando da música como aquilo que ela é antes de ser música — som, puro e simples som. Devo ficar parecendo com aqueles cachorros deitados sob o sol em uma manhã de inverno, saboreando o calor no corpo, os olhos semi-cerrados, quase dormindo, pensando em nada. Por último, mencionarei algo que fica aí pelo meio do caminho entre o AOR e o BIG|BRAVE: Iron Maiden, é claro. O inverno é a minha estação metaleira por excelência, é quando escuto todo o heavy (e o doom e o black e o death) metal que pouco escuto no restante do ano, e me ponho a par das novidades e revisito os favoritos do coração. O Maiden foi a banda que despertou minha paixão pelo gênero: lembro de um amigo que adorava Metallica e tentava me converter com o Master of Puppets, porém, naquela época, eu achava aquilo um som tosco e grosseiro demais, sem nuance alguma, algo que não era para mim. Outro amigo então me emprestou o No Prayer for the Dying e aí sim — embora seja este notoriamente um dos discos mais fracos do Maiden — aí sim percebi que havia ali um mundo em que eu poderia habitar. Mas o fato — o fenômeno, na verdade — é que hoje em dia o Iron Maiden não é apenas uma questão de afeto com as coisas da adolescência rebelde, ou algo a nos impressionar pela mera longevidade, como o Rolling Stones; depois de um disco meio patético chamado Virtual XI, lançado em 1998, Bruce Dickinson retornou à banda e o Maiden se transformou em algo verdadeiramente surpreendente, lançando discos aventureiros e ambiciosos que praticamente não falham em assombrar os fãs e os comentaristas do mundo do metal. (Analisando a discografia da banda em retrospecto, talvez não seja tão surpreendente assim que a banda tivesse esta semente dentro dela; discos como Powerslave, Somewhere in Time e X Factor já sugeriam que o Maiden nunca seria uma banda acomodada. Mas o que estamos vendo acontecer me parece ainda mais impressionante do que qualquer um poderia ter previsto, ainda mais depois do Virtual XI.) Brave New World, que monopolizou minha mente durante a última semana de julho, é o marco inicial desta jornada (re-)iniciada há 23 anos, e ainda um dos melhores. É mais ou menos como os discos do Yes que mencionei no mês passado: são discos-territórios que cativam por proporcionar estadias imaginárias em geografias e mitologias estrangeiras (quando não extra-terrenas), universos que adentramos quando a primeira faixa inicia e por ali ficamos durante uma hora, uma hora e meia, debaixo de outra cor de céu, testemunhas de outros portentos, sujeitos a outras leis e códigos de honra. A banda soa como uma multidão: as guitarras e o baixo de Steve Harris e a voz de Bruce Dickinson acossam o ouvinte, exigem que este fique atento diante de todo aquele frêmito e movimento. Há lá também um baterista, que faz um um esforço sobre-humano para não ficar soterrado! Puro escapismo fantasioso, eu não ignoro, sem nenhum aperfeiçoamento intelectual como recompensa. Penso que todos deveríamos ler Primo Lévi para compreender como podem conviver dentro de nós o horror e a beleza da humanidade; Eric Hobsbawm e Karl Marx para entender a luta de classes e o que move as rodas da história; Freud para entender o subconsciente e Wislawa Szymborska para se ter a correta medida de tudo isto e tornar-se um ser humano melhor. Para a folga entre estas leituras e uma escapadela para outro mundo, ainda há pouca coisa mais eficiente do que o bom e velho Maiden.
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