Discos do mês - Março de 2022
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

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Satoko Fujii - Indication
Pessoas de sorte, nós os admiradores do som do piano: há sempre um sem-número de discos incríveis a serem descobertos nesta seara. Escrevo frequentemente sobre os meus intérpretes favoritos e favoritas do repertório da música clássica — Martha Argerich, Angela Hewitt, Maurizio Pollini, Mitsuko Uchida e András Schiff, Stephen Hough, Glenn Gould, entre outros — e menos, muito menos do que deveria sobre meus favoritos e favoritas no mundo da música mais livre (jazz, avant-garde, como se queira chamar), cujo elenco, devo reconhecer, é bem mais restrito e masculino. Thelonious Monk, Cecil Taylor e Keith Jarrett tem impressões minhas espalhadas por estas páginas, e acho que não vai muito além disso… Mas creio que um nome feminino veio finalmente se juntar a esta turma: o da japonesa Satoko Fujii. Vejam (e escutem) que maravilha sua página no bandcamp: horas e horas de pianismo virtuoso e aventureiro, sem nunca descuidar da força lírica de que o instrumento é capaz. Satoko parece canalizar com frequência as mesmas tempestades mentais que originavam a música inigualável de Cecil Taylor, mas mantendo um pouco mais de compostura, de controle, o que resulta em momentos de grande beleza extática, beleza do tipo que nos acostumamos a ouvir nos discos ao vivo de Keith Jarrett. Não tome minha palavra como a de uma autoridade, porque estou muito longe de sê-lo: comprove o que digo escutando à faixa de abertura de Hajimeru. Já deve estar próximo da primeira centena o número de discos gravados por Satoko Fujii; creio ser agora minha obrigação permanecer vivo por pelo menos mais uma década.
Malibu - One Life
Passei boa parte do mês de março escutando ambient, ora pendendo para obras mais formalistas e rigorosas — composições de artistas consagrados ou prestes a se consagrar, os eleitos e eleitas das residências artísticas nas instituições de vanguarda européias —, ora pendendo para a mais despretenciosa e desavergonhada new age (para isso ninguém deve propor residência e nem pagar bolsa de estudos; os visionários da Nova Era trabalhavam de seus apartamentos mesmo, abafando com seus teclados Yamaha o barulho das ruas lá embaixo). E escutei também bastante coisa entre esses dois extremos, um extenso espectro de música que não deixou de abarcar minimalistas e música eletroacústica. Um disco que eu diria vagar meio à deriva por estes mares é esse One Life, da compositora francesa Malibu (procurei por mais informações sobre ela, seu nome ao menos, mas não achei nada). Talvez ele seja a epítome do que estive procurando na música que escutei nestes últimos dias: retiro, repouso, hipnose. Não que Malibu possa já ombrear-se com Pauline Oliveros ou Éliane Radigue, mas a dosagem exata dos elementos que compõe este tipo de música — abstração, repetição, etc. —, a medida precisa que minha mente vinha pedindo aconteceu de eu a encontrar com mais frequência em One Life do que nos discos das minhas heroínas Radigue e Oliveros, a quem também venho escutando reiteradamente. Bem, talvez não estejam em uma mesma categoria, Malibu e, digamos, Radigue; talvez em comum tenham apenas a nacionalidade francesa e pouco mais. A música da jovem Malibu é bem mais humana e emocional, e nem fica assim tão longe da new age de Constance Demby, enquanto que os objetos de trabalho da veterana Radigue são experimentos radicais em repetição, pulsações mínimas e micro-tonalidade. Por outro lado, de uma outra perspectiva, elas habitam, sim, um mesmo mundo: um mundo feito de visão interior, de sons que se deslocam como ondas, música criada para o espírito.
Julianna Barwick - Healing Is a Miracle
A música de Julianna Barwick decerto posiciona-se ainda mais distante da de Radigue, mas também ela habita este mesmo mundo mencionado acima — também ela pode servir de retiro e descanso espírito-mental. Eu diria que a imersão promovida pelos discos de Barwick é a mais peculiar destas todas; sua música tem algo de profundamente pessoal (especulei algo sobre isso neste comentário), uma concepção sonora de tal maneira exclusiva que, quando a voz do cantor do Sigur Rós aparece na faixa In Light de Healing Is a Miracle, o efeito é o de um anticlímax, uma quebra no encanto, pois essa voz nos faz lembrar de outra coisa, de uma outra música bem mais conhecida e prosaica, o que acaba por restabelecer à força a ligação com o mundo do qual havíamos nos retirado e para o qual preferíamos não ter que voltar antes do fim do disco. Mas Healing Is a Miracle é ótimo, a despeito desta fissura. Para além dos ecos, vozes e loops que habitam sua superfície, em sua substância há um forte senso de transmissão beatífica, de alimento espiritual, o que faz a música de Barwick atravessar séculos para irmanar-se com Hildegard von Bingen e com a música coral medieval. A tecnologia empregada apenas adiciona uma nova dimensão: não mais encerradas em um mosteiro, cada peça se expande no tempo e no espaço de uma forma bastante visual — eu distintamente as vejo enquanto as ouço, prismáticas e translúcidas, e as sinto regenerando as partes do meu cérebro que, ao longo do dia, vão sendo lesadas pelo trabalho, pelo cansaço, pelas notícias. "Healing Is a Miracle", pontifica o título do álbum; pode ser, mas pode ser também este disco.
Picnic at Hanging Rock Soundtrack
A trilha sonora de Picnic at Hanging Rock, na verdade, nunca foi lançada oficialmente, porém as almas caridosas aparentemente ainda caminham por sobre a Terra, e uma delas — que calhou ser também autora de um blog sobre música — compilou a música utilizada no filme de Peter Weir e disponibilizou-a para download. Muitíssimo obrigado, caro irmão ou irmã de fé desconhecido(a)! Picnic at Hanging Rock é uma pérola do cinema australiano, um filme de horror cujo horror nunca chega a materializar-se: a ameaça, cuja natureza não fazemos a menor ideia qual seja, fica o tempo todo oculta na estranhíssima atmosfera do filme (algo entre o sonho e a alucinação), escondida por entre as fendas das rochas, em relógios que param e nos olhares embaciados. Há referências a Botticelli e há coalas nas árvores (pois é, é realmente um filme muito estranho); a trama avança e nada se esclarece, pelo contrário, tudo parece embotar-se cada vez mais. A fotografia é magistral e a música não fica muito atrás, com algumas peças experimentais dividindo espaço com música folclórica e com Mozart e Beethoven, o que nos faz pensar em Stanley Kubrick e sua predileção por misturar György Ligeti, Wendy Carlos e Strauss. Algo do filme se infiltra no ambiente quando você escuta à flauta de Gheorghe Zamfir e às peças enigmáticas de Bruce Smeaton, e é por isso que eu venho escutando a este disco frequentemente: eu adoraria morar perto de Hanging Rock e ficar perambulando por lá como um sonâmbulo pelo resto dos meus dias.
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