Medicamento noturno
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

Crédito(s): Mitsuko Uchida em foto de Roger Mastroianni, copiada daqui.
Texto:
Pode ter sido efeito do aguaceiro que desabou naquela noite, noite que concluía um dia quente e abafado, de difícil travessia. Pouco antes, no fim da tarde, os canteiros de grama que circundam a quadra onde moro haviam sido aparados, de modo que quando a chuva grossa caiu sobre a grama recém cortada e a terra aquecida, um aroma inebriante desprendeu-se e do chão elevou-se instantaneamente, um velho conhecido perfume de outros tempos e outras terras (pois os tempos eram mesmo outros, enquanto que a terra era, na verdade, a mesma, mas de tão mudada parece outra), perfume natural já quase esquecido devido ao odor nauseante e repulsivo que este país emana atualmente, o odor permanente de esgoto e de gasolina. Mas não naquela noite. Pode então ter sido efeito da chuvarada e das fragrâncias ativadas por ela, mas é mais provável que a natureza tenha dado apenas uma pequena parcela de contribuição, pois a música que escolhi ouvir naquela noite, as sonatas para piano de Beethoven, nunca falha em me abalar. E foi mesmo memorável, emocionante. É sempre um choque ouvir estas peças, uma comoção sempre renovada, quando não amplificada. A médium que selecionei para ouvir foi Mitsuko Uchida. Suas interpretações de Schubert eu conheço a fundo, mas esta sua visão de Beethoven eu apenas começo a desvendar (que sorte a minha). Era um disco da Decca com duas sonatas; a primeira eu não lembro qual era — uma bela e misteriosa anônima, como uma Lauren Bacall entrando no escritório do detetive e indo embora antes que a este possa ocorrer a gentileza de perguntar seu nome — e a segunda, a famosa Hammerklavier, uma das unanimidades entre as 32 escritas pelo alemão imortal. Eu ouvia a interpretação de Uchida, observava a chuva e aspirava a noite, mas também, às vezes, me parecia que observava a música e escutava a noite. Bem que todos os dias podiam terminar assim. E noutra noite — nesta também chovia, mas da terra não emanava coisa alguma; antes ela parecia inerte, exausta, exaurida, morta de concreto, de cansaço, do peso que este país atroz exerce sobre ela — noutra noite eu me injetei, com efeitos balsâmicos similares, um disco de András Schiff tocando obras de Leoš Janácek. Este CD é um dos pequenos milagres da minha coleção, dividindo o mesmo espaço mental que reservo ao Ambient 2: The Plateaux of Mirror, ao Laughing Stock, ao Jasmine e a poucos outros. Schiff pode não ter o mesmo status de Pollini, Uchida e Argerich, mas para mim não é menos bruxo do que nenhum destes: ouça a este disco e tente imaginar alguém executando o que lê em uma partitura — tente convencer-se de que esta música é tão somente resultado da mera articulação de alguns músculos. É irrealizável, terminantemente inconcebível. A música vêm de outro lugar e flui através do corpo do piano e do pianista, extrapola o tempo do pensamento, realiza-se ao mesmo tempo em vários níveis. Nada disso pode ser apenas matéria de técnica ou presteza; é prestidigitação e feitiçaria. Para a noite de hoje planejo algo um pouco diferente: o novo disco de Hans-Joachim Roedelius e Tim Story. O que já escutei antes destes dois juntos me faz ter a certeza de que será outro fim de dia tranquilo retirado do mundo.
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