Dying Days
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Sobre uma canção de Julianna Barwick

Fabricio C. Boppré |
Sobre uma canção de Julianna Barwick

Crédito(s): Julianna Barwick em foto de autor desconhecido, copiada daqui.

Tenho escutado muito aos discos de Julianna Barwick, mas a verdade é que, se eu pudesse, ficaria horas a fio escutando no repeat a apenas uma faixa, Bob in Your Gait, do álbum A Magic Place. (O que me impede de fazer isso é a política pessoal de nunca ouvir uma mesma canção repetidas vezes em sequência, uma mania tola e sem sentido algum, mas que observo rigorosamente desde sempre.) Bob in Your Gait exerce sobre mim um fascínio quase paralisante, algo que me fez passar muitas horas nos últimos dias procurando no fundo de minha mente as razões que poderiam explicar-lhe. Pois tenho esta convicção: há um motivo ulterior para eu gostar tanto desta faixa, para ela me soar tão próxima e evocativa. Há algo nela que eu já conhecia antes de escutá-la, que seu véu de ecos e reverberações impedem um reconhecimento imediato, que sua tênue melodia parece tentar disfarçar, mas me bastam dois ou três segundos de música, me bastam seus desvanecidos acordes iniciais para que me venha a certeza absoluta deste vínculo antigo, para que eu me veja imediatamente deslocado para dentro de um ambiente sensorial conhecido há muito tempo, algo talvez anterior a qualquer outra lembrança minha. É muito pouco o que posso descrever. Há um pressentimento de dissipação, de despedida; parece haver névoa, e sinto a umidade tocando a pele. Talvez uma casa velha, de paredes descascadas, escurecida no crepúsculo de um fim de tarde ou das primeiras horas do amanhecer. Tudo se passa em algum mausoléu de minha memória, ao qual ainda não tenho acesso totalmente franqueado, mas sei que ele permanecerá por ali enquanto eu estiver vivo. Pode até ser que seja o cenário e o tempo de um sonho antigo ou algo visto em algum filme, pouco importa: se a vida vivida fora dos sonhos e dos filmes pode também ela ser compreendida como uma ilusão formulada e registrada em nossos cérebros — impressões recebidas pelos nossos sentidos, filtradas pelas nossas crenças e predisposições, memorizadas sabe-se lá como — então no fim das contas toda esta experiência que vamos acumulando se equivale, independente de sua origem. O melhor da música de Julianna Barwick — e, para mim, mais do que qualquer outra, Bob in Your Gait — se parece menos música e mais uma espécie de mantra cujo objetivo é fazer o ouvinte compreender exatamente isto: que a substância do mundo é a mesma da imaginação e esta pequena inflexão cognitiva pode muito bem ser a diferença entre uma vida desperdiçada, arruinada por traumas e aflições, e uma vida serena passada sob a descansada luz da interioridade.

Categoria(s): Opinião

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