Uma maratona Anthrax
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

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A esta altura da vida algumas lembranças mais antigas encontram-se já meio incertas e desodernadas cronologicamente, mas é seguro afirmar que o Anthrax foi uma das primeiras bandas de metal que me interessaram e integraram minha coleção de discos (formada, à época, por uma porção de fitas cassetes gravadas a partir do rádio e de vinis e de outras fitas emprestados daqui e dali). Muito antes de eu passar a ouvir certas bandas incontornáveis e mais ou menos associadas — Metallica, Slayer, Testament —, eu já gostava do Anthrax. Há um elemento extra-musical nesta predileção: o Anthrax tinha uma aura um pouco menos heavy metal e algo de punk/hardcore; era frequente escutá-los nos documentários de surf e ver seu logotipo nos shapes dos skates e nas camisetas dos skatistas, culturas ao redor das quais gravitei durante boa parte da adolescência. O Metallica, diga-se, também tinha seus fãs entre estas tribos (em parte por conta das artes do Pushead), mas eu sentia mais afinação com o Anthrax, que tinha mais groove e parecia ter mais atitude, enquanto o Metallica pré-Black Album soava grosseiro e severo demais para o meu gosto em formação (o Master of Puppets, por exemplo, na primeira vez em que o escutei, me soou simplesmente intolerável, me pareceu uma música idiota, puro peso obtuso e sem nuance alguma). Com o tempo e a expansão dos meus interesses o Anthrax foi ficando meio de lado, mas manteve preservado, sempre, um lugar especial na malha histórica dos meus afetos musicais. Durante todo esse tempo senti-os por perto, como que um atalho seguro para uma boa dose de nostalgia e rebeldia adolescentes. E nas últimas semanas lancei mão diversas vezes deste recurso. Era hora! Já não tenho um toca-fitas para escutar às fitas gravadas há mais de três décadas, mas tenho os onze álbuns de estúdio da banda no computador e me pus a escutá-los em ordem cronológica de lançamento. Seguem algumas impressões e meu ranking dos discos do Anthrax.
O Anthrax em 1984, em foto de autor desconhecido (copiada daqui).
Foi uma viagem no tempo, direto para o tempo aconchegante da infância em que fascistas não passavam de aberrações em preto-e-branco nas páginas das enciclopédias, há muito mortos e desprezados. O primeiro álbum do Anthrax, Fistful of Metal, de 1984, na verdade eu só fui escutá-lo bastante tempo depois, e por conta disso o encaro como mera curiosidade de museu, pouco mais do que arruaceiros emulando o Judas Priest e levando à décima potência a cafajestagem do Kiss e do AC/DC. Mas é, sem dúvida, um pedaço importante da história do metal, anárquico e veloz, com os méritos adicionais de ter ensejado o primeiro uso do termo thrash metal (assim o jornalista Malcolm Dome teria descrito a faixa Metal Thrashing Mad na revista Kerrang) e de ter tido sua arte gráfica censurada na Alemanha. Com o segundo álbum, aí sim entramos simultaneamente no território das minha memórias adolescentes e na época de ouro do Anthrax. Spreading the Disease, de 1985, traz composições e um vocalista bem melhores do que as do primeiro álbum, deixando no passado a contrafação pouco distinta de Judas Priest. A produção mais profissional faz os solos resplandecerem, os riffs são mais ferozes; é o Anthrax se transformando em Anthrax. O auge viria dali a dois anos com Among the Living. Acho que este foi o primeiro álbum do Anthrax que escutei e tenho certeza de que se trata do meu favorito. Adoro a audácia dos gang shouts, que aproximam a banda ao hardcore; as mudanças de andamento nos refrões, o baixo proeminente, os riffs em cascata. O ritmo maníaco de Caught in a Mosh pode mudar o rumo da vida de qualquer adolescente, não sei bem se para melhor ou pior. Sei que Among the Living aparecerá fácil entre meus 10 discos de metal favoritos se algum dia eu fizer tal classificação.
State of Euphoria e Persistence of Time, de 1988 e 1990, são continuidades de Among the Living. Todos estes discos têm para mim um sabor sinestésico de confronto, de subversão, e escutá-los hoje me faz reviver em quase perfeita similitude, como que preservada em âmbar, a euforia sentida quando escutei-os pela primeira vez em plena efervescência adolescente: o frêmito e a excitação da descoberta de uma música que era também uma forma de antagonismo contra os adultos que nos cercavam, de rebelião contra o mundo de plástico que víamos pela televisão. Não era a música de nossos pais e demais familiares; não era a música da grande maioria dos nossos colegas de escola: o Anthrax era um passo além do Guns N' Roses, era, enfim, a nossa música. (Não era sequer a música de todos os meus amigos mais chegados; era a música de um subgrupo ainda menor, e também de alguns grupos de conhecidos mais velhos que observávamos meio de longe e dos quais fingíamos fazer parte.)
O Anthrax no começo dos anos 1990, em foto de autor desconhecido (copiada daqui).
Suponho que seja razoável estimar que em 1993 cerca de 95% dos adolescentes de classe média ocidentais ouviam uma única e mesma coisa: grunge. Era inescapável. Continuava sendo uma música através da qual demarcávamos nossas posições, porém ela vinha agora com mais nuance emocional, mais melodia e, não menos importante, era feita por jovens de vestuário e aparência menos exóticos. Havia mais proximidade entre esta nova geração de rebeldes e nós e a identificação foi imediata, fato que não passou desapercebido por muitas bandas de metal. Sound of White Noise anuncia esta nova era na trajetória do Anthrax. Eu gosto deste disco, o último que lembro de ter escutado logo após ter sido lançado, ou seja, enquanto fã ativo da banda. A injeção de influências contemporâneas é evidente — Black Lodge (que tem a participação de Angelo Badalamenti, o homem por trás da música de Twin Peaks e dos filmes do David Lynch) poderia estar nos discos de algumas das bandas de Seattle; This Is Not An Exit tem afinação de guitarra que lembra outras modernidades da época tais como o Biohazard — mas nada disso chega a solapar a banda e sua identidade, o que talvez seja uma opinião pessoal pouco compartilhada com outros fãs do Anthrax. Já Stomp 442, de 1995, este é mais difícil de defender. Enquanto sua última faixa lembra o Stone Temple Pilots, o restante do álbum vai na linha "metal alternativo" prenunciada no álbum anterior. Copiar o Helmet, na melhor das hipóteses, é coerente; copiar o Stone Temple Pilots, por outro lado, será sempre uma péssima ideia. Qual seja sua opinião sobre estas bandas, o problema estava posto: neste disco quase nada resta do bom e velho Anthrax original.
Volume 8: The Threat Is Real, de 1998, se não agrava o problema, tampouco o resolve. Talvez fosse o caso de considerar que o Anthrax não estivesse passando por uma crise de identidade, mas havia de fato se transformado e vivia sob uma nova identidade, sem ter tido a coragem, no entanto, de trocar de nome. Do ponto de vista pessoal, em todo o caso, eu não andava por aí preocupado com isso, haja vista que à medida em que nos aproximávamos da virada do milênio eu me afastava gradualmente do metal (e das bandas que já haviam sido metal algum dia). Minha metaleirice àquela altura parecia destinada a ficar arquivada no passado — uma fase da adolescência, digamos, assim como os discos da Xuxa e do Dominó haviam ficado arquivados no capítulo "infância". Mal podia eu saber que esta paixão (o metal, não o Dominó) voltaria tempos depois com força brutal e responde hoje em dia por mais da metade de tudo quanto escuto diariamente, com sobras... Estes últimos discos do Anthrax, então, eu só vim a escutá-los recentemente, já no contexto desta minha segunda fase de headbanger. E como estamos sempre dispostos a ser de novo e novamente condescendentes com nossas bandas mais queridas, lembremos que no fim dos anos 90 o mundo em sua loucura atávica vivia o auge do nu metal, e o Anthrax teve ao menos o bom senso de não se espelhar no Korn. We've Come for You All, de 2003, talvez seja um pouco melhor do que Volume 8, mas isso é o mais que consigo dizer sobre ele.
O Anthrax em 2015, foto de Jimmy Hubbard (copiada daqui).
Temos enfim um disco digno do Anthax em 2011, com Worship Music. Não apenas por conta da volta do vocalista Joey Belladonna, que havia deixado o grupo após o lançamento de Persistence of Time: soando mais agressiva, com os dentes arreganhados, a banda parece ter entrado em estúdio com suas prioridades reorganizadas. Fight 'Em 'Til You Can't, por exemplo, tem um irresistível sabor Among the Living sem deixar de soar um perfeitamente coerente Anthrax do século XXI. For All Kings, lançado cinco anos depois, confirma que a banda voltara ao trilhos e autoriza os velhos fãs a tirarem de vez suas surradas camisetas do Anthrax dos armários. Pena ter sido este o último disco de estúdio da banda, lá se vão quase 10 anos. Mas esse número redondo talvez não chegue a se concretizar: notícias dão conta de que em breve poderemos ter um novo álbum deste experiente e querido titã. Com minha condição de fã retificada e renovada, aguardo alegremente.
Ranking
- Among the Living (1987)
- State of Euphoria (1988)
- Persistence of Time (1990)
- Sound of White Noise (1993)
- Spreading the Disease (1985)
- Worship Music (2011)
- For All Kings (2016)
- We've Come for You All (2003)
- Volume 8: The Threat Is Real (1998)
- Fistful Of Metal (1984)
- Stomp 442 (1995)
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